por Dezsö
Kosztolányi
Décimo quarto capítulo de Esti Kornél, no qual se desvendam as misteriosas artimanhas de Gallus, tradutor erudito mas errante.
Falávamos de escritores e poetas, de velhos amigos,
que tinham começado por fazer caminho connosco, mas depois ficaram para trás e
desapareceram. De vez em quando lançávamos um nome para o ar. Quem é que ainda
se lembra dele? Assentíamos e um sorriso vago iluminava-nos os lábios. No
espelho dos nossos olhares reflectia-se um rosto tido por esquecido, uma
carreira, uma vida perdidas. Quem sabe alguma coisa dele? Ainda estará vivo? A
resposta era o silêncio. Nesse silêncio, os louros secos da glória restolhavam
como as folhas caídas num cemitério. Permanecíamos em silêncio.
Durante um desses silêncios, de vários minutos,
alguém citou o nome de Gallus.
— Coitado — disse Esti Kornél. — Vi-o ainda há uns
anos, talvez sete ou oito anos, em tristes circunstâncias. Por essa altura
sucedeu-lhe uma história por causa de um conto policial, que por si só é um
conto policial, o mais emocionante e doloroso que já vivi.
Mas vocês conheciam-no, pelo menos um pouco. Um
rapaz talentoso, brilhante e intuitivo, e além disso consciencioso e culto.
Falava várias línguas. Sabia tão bem inglês que ao que se diz dava lições de
inglês ao Príncipe de Gales. Viveu lá fora, em Cambridge, durante quatro anos.
No entanto, tinha um defeito fatal. Não, não era a
bebida. Mas palmava tudo o que lhe vinha às mãos. Roubava que nem uma pega.
Tanto lhe fazia se era um relógio de bolso, uma pantufa ou uma gigantesca
chaminé de fogão. Não se importava nem com o valor das coisas roubadas, nem com
o volume ou tamanho delas. O seu prazer era apenas fazer aquilo que queria:
roubar. Nós, os amigos mais chegados, tentávamos dar-lhe a volta. Com carinho,
pregávamos-lhe sermões. Ralhávamos-lhe e fazíamos-lhe ameaças. E ele até nos
dava razão. Prometia lutar contra a sua própria natureza. Mas a razão lutava em
vão, a natureza era mais forte. Recaía sempre.
Inúmeras vezes se viu repreendido e humilhado em
público por estranhos, mais de uma vez apanhado em flagrante. Nessas alturas
tínhamos de nos esforçar para remediar de um modo ou outro as consequências dos
seus actos. No entanto, uma vez no expresso de Viena palmou a carteira de um
comerciante moravo que o apanhou ali mesmo, e o entregou à gendarmaria na
estação seguinte. Trouxeram-no algemado para Budapeste.
Tentámos salvá-lo novamente. Vocês que escrevem,
sabem que tudo depende das palavras, tanto a excelência de um poema, como o
destino de um homem. Argumentámos que era cleptómano, e não ladrão.
Se é nosso conhecido, geralmente é cleptómano. Se
desconhecido, é ladrão. O tribunal não o conhecia, pelo que foi considerado
ladrão e condenado a dois anos de prisão.
Depois de ser posto em liberdade, numa manhã escura
de Dezembro, perto do Natal, apareceu-me à porta esfomeado e esfarrapado. Caiu
de joelhos à minha frente. Implorou-me que não o abandonasse, que o ajudasse,
que lhe arranjasse trabalho. Não podia, por enquanto, escrever sob o próprio
nome. Mas não sabia fazer outra coisa, senão escrever. Fui então falar com um
editor decente e humano, recomendei-o, e no dia seguinte a editora encarregou-o
da tradução de um conto policial inglês. Para nós era pouco mais que lixo,
envergonhava-nos sujar as mãos com tal coisa. Não líamos. No máximo
traduzíamos, mas só de luvas. Ainda me lembro do título: O Misterioso Castelo
do Conde Vicislav. Mas que importava isso?
Eu estava contente por poder ter feito alguma
coisa, e ele também estava contente por poder ganhar o seu pão. Atacou o
trabalho com entusiasmo. Trabalhou com tal afinco que entregou o manuscrito
passadas três semanas, antes do prazo estipulado.
Fiquei tremendamente admirado quando, dias depois,
a editora me informou por telefone que a tradução do meu protegido era
inutilizável e que não iria pagar um tostão por ela. Não compreendi. Apanhei um
coche e segui para lá.
O editor entregou-me o manuscrito sem uma palavra.
O nosso amigo tinha-o passado a limpo à máquina, numerado as páginas, e até as
tinha atado com um cordão com as cores nacionais. Isso era típico dele, acho que
já tinha dito que em termos profissionais ele era de confiança, de um rigor
escrupuloso. Comecei a ler o texto. Exclamei de encanto. Frases claras,
expressões perspicazes, subtis engenhos linguísticos sucediam-se uns aos
outros, tantos que aquela literatura de pacotilha talvez nem os merecesse.
Surpreendido, perguntei ao editor o que tinha a objectar. Sempre sem uma
palavra, entregou-me então o original inglês, pedindo-me para comparar os dois
textos. Estive durante meia hora a analisá-los, olhando ora para o livro, ora
para o manuscrito. Por fim, levantei-me estupefacto. Disse ao editor que tinha
toda a razão.
Porquê? Não tentem adivinhar. Estão enganados. Não,
não era a tradução de outro romance. Tratava-se mesmo da tradução fluente,
artística, por vezes com arrojos poéticos d'O Misterioso Castelo do Conde
Vicislav. Estão outra vez enganados. Não, não tinha um único erro de tradução.
Realmente dominava tão bem o inglês como o húngaro. Parem. Nunca ouviram nada
que se pareça. O "gato" era outro. Outro mesmo.
Eu também só comecei a perceber gradualmente, pouco
a pouco. Oiçam. A primeira frase do original inglês era: 'Todas as trinta e
seis janelas do velho e escalavrado castelo estavam iluminadas. Em cima, no
primeiro andar, no salão de baile, brilhavam quatro luxuosos lustres de
cristal...' Na tradução húngara estava: 'Todas as doze janelas do velho e
escalavrado castelo estavam iluminadas. Em cima, no primeiro andar, brilhavam
dois luxuosos lustres de cristal...' Arregalei os olhos, e continuei a ler. Na
terceira página, o escritor inglês dizia: 'Com um sorriso irónico, o conde
Vicislav esvaziou a carteira bem recheada, e atirou-lhes o montante exigido,
mil e quinhentas libras...'
A versão do tradutor húngaro era: 'Com um sorriso
irónico, o conde Vicislav esvaziou a carteira, e atirou-lhes o montante
exigido, cento e cinquenta libras...' Comecei a sentir uma suspeita de mau
augúrio, que infelizmente em poucos minutos se transformou numa triste certeza.
Mais abaixo, no fim da terceira página, a edição inglesa dizia: 'A condessa
Eleonor estava sentada a um canto do salão de baile, vestida de gala, usando as
antigas jóias de família: ostentava na cabeça a tiara de diamantes que herdara
da sua tetravô, esposa de um príncipe-elei-tor alemão; no colo de alabastro brilhava
um colar de pérolas opalino, e os seus dedos estavam quase hirtos com anéis de
brilhantes, safiras e esmeraldas...' Para minha grande surpresa, o manuscrito
húngaro reconstruiu essa descrição colorida da seguinte maneira: 'A condessa
Eleonor estava sentada a um canto do salão de baile, vestida de gala...' Mais
nada. Faltavam a tiara de diamantes, o colar de pérolas, os anéis de
brilhantes, as safiras e as esmeraldas.
Estão a perceber o que tinha feito este nosso
desgraçado colega, bem digno de melhor sorte? Pura e simplesmente roubara as
jóias de família da condessa Eleonor, com a mesma imperdoável ligeireza
aliviara também o conde Vicislav, aliás tão simpático, deixan-do-lhe apenas
cento e cinquenta das mil e quinhentas libras, de igual forma fanara dois dos
quatro lustres de cristal do salão de baile, e desviara ainda vinte e quatro
das trinta e seis janelas do velho e escalavrado castelo. Sentia o mundo a
girar à minha volta. O meu espanto atingiu o auge quando cheguei à conclusão,
sem margem para dúvidas, de que o mesmo marcava de forma consistente e fatal
todo o seu trabalho. Por onde passasse, a caneta do tradutor lesava as
personagens que tinha acabado de conhecer, não poupando nem móveis, nem
imóveis, violando a quase incontestavelmente sagrada propriedade privada.
Trabalhava usando diferentes técnicas. Na maior
parte das vezes, os objectos de valor evaporavam-se sem deixar rasto. Dos
tapetes, dos cofres e das pratas, destinados a elevar o nível literário do
original inglês, não restavam nem vestígios no texto húngaro. Outras vezes
surripiava só uma parte, metade ou dois terços. Se alguém mandava o criado
levar cinco malas para a carruagem de comboio, ele mencionava apenas duas, e
sonegava insidiosamente as restantes três. De qualquer forma, para mim o mais
desolador — talvez por demonstrar verdadeira perfídia e desonestidade — era o
facto de ele com frequência substituir os metais nobres e as pedras preciosas
por materiais reles e sem valor, a platina por lata, o ouro por cobre e o
diamante por cristal ou vidro.
Despedi-me da editora cabisbaixo. Por curiosidade
pedi para ficar com o manuscrito e o original inglês. Intrigava-me o verdadeiro
mistério deste policial, por isso em casa continuei a investigação e fiz o
inventário dos objectos roubados. Trabalhei sem descanso da uma da tarde até às
seis e meia de manhã. No fim, apurei que o transviado do nosso colega, ao longo
da tradução, se tinha apropriado indevidamente e ilegalmente de 1 579 251
libras esterlinas, 177 anéis de ouro, 947 colares de pérolas, 181 relógios de
bolso, 309 pares de brincos, 435 malas de viagem, sem contar com as
propriedades, florestas e pastos, palácios ducais e baroniais, tal como
pequenos objectos insignificantes, lenços, palitos e campainhas, que seria
longo, e talvez inútil, enumerar.
Onde é que ele metia os móveis e imóveis que afinal
só existiam no papel, no mundo da imaginação, e qual o objectivo do furto,
seria uma questão que nos levaria longe e que por isso não vou aprofundar. Mas
tudo isto me convenceu de que ele continuava escravo do seu vício delinquente
ou da sua doença, que não havia esperanças de cura, e que não merecia o apoio
da sociedade respeitável. Eu, na minha indignação moral, desisti dele.
Abandonei-o ao seu destino. Nunca mais ouvi falar dele.
(1932)
Ficçõesde humor. Revista de contos, Lisboa,Tinta Permanente, [2003],pp. 121-129.Tradução de Agnes Jancsó C. Lopes)
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