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domingo, 21 de outubro de 2012

700. E conta-me histórias


 
Pintura de Li Zilian
«E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar»

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, Poema VIII (excerto)

699. Sofro, Lídia, do medo do destino.

Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
             Meu coração.

Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
             Sem renovar

Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
             No anoitecer.

Ricardo Reis, Odes

sábado, 20 de outubro de 2012

698. Liberdade

Durante uns dias Sors ficou num belíssimo hospital psiquiátrico. A liberdade era tão grande que sentiu umas melhoras nos olhos. Sors podia andar nu, insultar quem quisesse, gritar, enfim, tinha descoberto a verdadeira liberdade. Sem convenções sociais, sem limites, sem diplomacia. Sors estava encantado, mas ao fim de dois dias de experiências já havia pouco para fazer e já não se sentia livre. É esse, aliás, o problema da liberdade: se é muita, tudo pode ser tudo, não há limites para nada, não há obstáculos, e o aborrecimento instala-se. Sors, nessa altura, pensou na importância das fronteiras. Fazem com que não percamos a nossa identidade. A liberdade é o maior inimigo da identidade e uma pessoa tem de arranjar um equilíbrio entre ambas.

Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, p. 114

697. Violência

Não há arte nenhuma capaz de convocar tantas almas quanto a violência.

 Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, p.1.

696. Guerra

Muitas vezes Sors via-se obrigado a disparar. Fazia-o para um espaço sem nome, perfeitamente incógnito, ligeiramente para cima, de modo a falhar todos os tiros. Não poderia jamais ter a certeza absoluta de não ter matado ninguém, mas acreditava nessa possibilidade. Nas execuções por fuzilamento, havia sempre um dos carrascos que tinha pólvora seca. Para que aqueles que disparavam contra um condenado pudessem acreditar na possibilidade da sua inocência. O nevoeiro e a distância, e o frio, e os gases, também serviam para isso. Eles, quando disparavam, não sabiam se acertavam, se as suas balas eram culpadas. Um soldado poderia sair, isso dizem-nos as probabilidades, de uma guerra sem matar ninguém e sem ter morrido. Isso significa, em termos científicos, que esse soldado é que ganhou a guerra. Não foram os austro-húngaros ou os russos ou os sérvios ou os otomanos ou os romenos ou os alemães ou os belgas ou os franceses ou os portugueses ou outros, mas aquele soldado.
—    Para ganhar uma guerra — disse Sors —, há duas condições: não morrer e não matar. É só nesse caso que se pode sair vitorioso de uma guerra.

Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, pp.73-74.

695. Nenhum império sobrevive à emoção

—    Nenhum império sobrevive à emoção. Criam-se fronteiras, mas são artifícios, linhas inventadas que podem impedir a livre circulação de bens e pessoas, mas não impedem que as emoções as rompam.
Sors, encostado à ombreira da porta da biblioteca, perguntou-lhe onde lera isso.
—    Em jornal nenhum — respondeu Wilhelm. — Para compreender o império, devemos olhar para um homem qualquer que passe na rua. E veremos que, por mais racional, por mais fronteiras que ele coloque para agir corretamente, mais tarde ou mais cedo sucumbirá à emoção. Se um homem tiver fome, o seu estômago tomará o poder. Nenhuma cabeça, nenhuma ordem será capaz de contrariar a barriga vazia. O império vai ruir.

Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, p.63.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

694. Lendo

Óleo sobre tela: Lesende, de Gerhard Richter

693. Há muitos tipos de comida

—    Há muitos tipos de comida — disse o coronel Mõller enquanto abanava o filho. — Um homem possui três estômagos: um na barriga, outro no peito e outro na cabeça. O da barriga, toda a gente sabe para que serve; o do peito mastiga a respiração, que é a nossa comida mais urgente. Uma pessoa morre sem ar muito mais depressa do que sem água e pão. E por fim há o estômago da cabeça, que se alimenta de palavras e de letras. Os primeiros dois estômagos do homem alimentam-se através da boca e do nariz, ao passo que o terceiro estômago se alimenta principalmente através dos olhos e dos ouvidos, apesar de usar tudo o resto de um modo mais subtil.

Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, p.20

692. Agora É

Agora é diferente
Tenho o teu nome o teu cheiro
A minha roupa de repente
ficou com o teu cheiro

Agora estamos misturados
No meio de nós já não cabe o amor
Já não arranjamos
lugar para o amor

Já não arranjamos vagar
para o amor agora
isto vai devagar
isto agora demora

Manuel António Pina, Poesia Reunida

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

691. Fernando Pessoa

Fernando Pessoa, por Afonso Cruz

690. Fernando pessoa - Nota Biográfica de 30 de março de 1935

Cópia do original dactiloscrito por Fernando Pessoa
Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa.

Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888.
Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto e que foi Director-Geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto de fidalgos e judeus.

Estado: Solteiro.

Profissão: A designação mais própria será «tradutor», a mais exacta a de «correspondente estrangeiro em casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.

Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dt.º, Lisboa. (Endereço postal - Caixa Postal 147, Lisboa).

Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos públicos, ou funções de destaque, nenhumas.

Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte: «35 Sonnets» (em inglês), 1918; «English Poems I-II» e «English Poems III» (em inglês também), 1922, e o livro «Mensagem», 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria «Poema». O folheto «O Interregno», publicado em 1928, e constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito.

Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prémio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.

Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.

Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.

Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.

Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».

Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.

Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos – a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania”.

Lisboa, 30 de Março de 1935

domingo, 14 de outubro de 2012

689. Agressão

A sua testa tem a marca de uma agressão com um jarro de vidro, mas é por dentro que os jarros de vidro magoam mais, e os estalos nas orelhas, e os murros, e os pontapés. Dão cabo do interior das pessoas como uma doença. Batem por fora, mas começam a afundar-se e a entranhar-se dentro das veias, nos pensamentos, nos intestinos, nos pulmões, no fígado. Crescem com as unhas e com os cabelos e com os ossos. Uma pessoa fica com metástases das agressões por todo o lado, com a alma escurecida apesar da luz fluorescente da cozinha, essa luz que nos deixa com cara de doentes.

Afonso Cruz,  «Quando as joaninhas de plástico deixam de falar»» in Afonso Cruz et allii, Isto não é um conto, Lisboa, Associação Link, 2012, p. 86..

688. Violência

Claro que o seu amor-próprio já tinha sido praticamente aniquilado por ele, porque, quando passas a vida a ouvir que não prestas, começas a acreditar nisso, e quando tudo o que recebes são humilhações, começas a pensar que as mereces. A repetição é a mais subtil das armas psicológicas. Toda esta dinâmica faz com que o medo se instale, comodamente, e nos habite dia após dia. Mês após mês. Ano após ano.

Karla Suáresz, «Esse Estranho Animal»» in Afonso Cruz et allii, Isto não é um conto, Lisboa, Associação Link, 2012, p.73.

domingo, 7 de outubro de 2012

686. Afoonso Cruz, O Pintor debaixo do lava-louça


685. Ler mais ler melhor: Enciclopédia da Estória Universal - Recolha de Alexandria, de Afonso Cruz

684. Não digas nada!


 Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.

Fernando Pessoa
(23-8-1934)

683. Minha pátria é a língua Portuguesa

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares

682. (O tradutor cleptómano)

por Dezsö Kosztolányi

Décimo quarto capítulo de Esti Kornél, no qual se desvendam as misteriosas artimanhas de Gallus, tradutor erudito mas errante.
Falávamos de escritores e poetas, de velhos amigos, que tinham começado por fazer caminho connosco, mas depois ficaram para trás e desapareceram. De vez em quando lançávamos um nome para o ar. Quem é que ainda se lembra dele? Assentíamos e um sorriso vago iluminava-nos os lábios. No espelho dos nossos olhares reflectia-se um rosto tido por esquecido, uma carreira, uma vida perdidas. Quem sabe alguma coisa dele? Ainda estará vivo? A resposta era o silêncio. Nesse silêncio, os louros secos da glória restolhavam como as folhas caídas num cemitério. Permanecíamos em silêncio.
Durante um desses silêncios, de vários minutos, alguém citou o nome de Gallus.
— Coitado — disse Esti Kornél. — Vi-o ainda há uns anos, talvez sete ou oito anos, em tristes circunstâncias. Por essa altura sucedeu-lhe uma história por causa de um conto policial, que por si só é um conto policial, o mais emocionante e doloroso que já vivi.
Mas vocês conheciam-no, pelo menos um pouco. Um rapaz talentoso, brilhante e intuitivo, e além disso consciencioso e culto. Falava várias línguas. Sabia tão bem inglês que ao que se diz dava lições de inglês ao Príncipe de Gales. Viveu lá fora, em Cambridge, durante quatro anos.
No entanto, tinha um defeito fatal. Não, não era a bebida. Mas palmava tudo o que lhe vinha às mãos. Roubava que nem uma pega. Tanto lhe fazia se era um relógio de bolso, uma pantufa ou uma gigantesca chaminé de fogão. Não se importava nem com o valor das coisas roubadas, nem com o volume ou tamanho delas. O seu prazer era apenas fazer aquilo que queria: roubar. Nós, os amigos mais chegados, tentávamos dar-lhe a volta. Com carinho, pregávamos-lhe sermões. Ralhávamos-lhe e fazíamos-lhe ameaças. E ele até nos dava razão. Prometia lutar contra a sua própria natureza. Mas a razão lutava em vão, a natureza era mais forte. Recaía sempre.
Inúmeras vezes se viu repreendido e humilhado em público por estranhos, mais de uma vez apanhado em flagrante. Nessas alturas tínhamos de nos esforçar para remediar de um modo ou outro as consequências dos seus actos. No entanto, uma vez no expresso de Viena palmou a carteira de um comerciante moravo que o apanhou ali mesmo, e o entregou à gendarmaria na estação seguinte. Trouxeram-no algemado para Budapeste.
Tentámos salvá-lo novamente. Vocês que escrevem, sabem que tudo depende das palavras, tanto a excelência de um poema, como o destino de um homem. Argumentámos que era cleptómano, e não ladrão.
Se é nosso conhecido, geralmente é cleptómano. Se desconhecido, é ladrão. O tribunal não o conhecia, pelo que foi considerado ladrão e condenado a dois anos de prisão.
Depois de ser posto em liberdade, numa manhã escura de Dezembro, perto do Natal, apareceu-me à porta esfomeado e esfarrapado. Caiu de joelhos à minha frente. Implorou-me que não o abandonasse, que o ajudasse, que lhe arranjasse trabalho. Não podia, por enquanto, escrever sob o próprio nome. Mas não sabia fazer outra coisa, senão escrever. Fui então falar com um editor decente e humano, recomendei-o, e no dia seguinte a editora encarregou-o da tradução de um conto policial inglês. Para nós era pouco mais que lixo, envergonhava-nos sujar as mãos com tal coisa. Não líamos. No máximo traduzíamos, mas só de luvas. Ainda me lembro do título: O Misterioso Castelo do Conde Vicislav. Mas que importava isso?
Eu estava contente por poder ter feito alguma coisa, e ele também estava contente por poder ganhar o seu pão. Atacou o trabalho com entusiasmo. Trabalhou com tal afinco que entregou o manuscrito passadas três semanas, antes do prazo estipulado.
Fiquei tremendamente admirado quando, dias depois, a editora me informou por telefone que a tradução do meu protegido era inutilizável e que não iria pagar um tostão por ela. Não compreendi. Apanhei um coche e segui para lá.
O editor entregou-me o manuscrito sem uma palavra. O nosso amigo tinha-o passado a limpo à máquina, numerado as páginas, e até as tinha atado com um cordão com as cores nacionais. Isso era típico dele, acho que já tinha dito que em termos profissionais ele era de confiança, de um rigor escrupuloso. Comecei a ler o texto. Exclamei de encanto. Frases claras, expressões perspicazes, subtis engenhos linguísticos sucediam-se uns aos outros, tantos que aquela literatura de pacotilha talvez nem os merecesse. Surpreendido, perguntei ao editor o que tinha a objectar. Sempre sem uma palavra, entregou-me então o original inglês, pedindo-me para comparar os dois textos. Estive durante meia hora a analisá-los, olhando ora para o livro, ora para o manuscrito. Por fim, levantei-me estupefacto. Disse ao editor que tinha toda a razão.
Porquê? Não tentem adivinhar. Estão enganados. Não, não era a tradução de outro romance. Tratava-se mesmo da tradução fluente, artística, por vezes com arrojos poéticos d'O Misterioso Castelo do Conde Vicislav. Estão outra vez enganados. Não, não tinha um único erro de tradução. Realmente dominava tão bem o inglês como o húngaro. Parem. Nunca ouviram nada que se pareça. O "gato" era outro. Outro mesmo.
Eu também só comecei a perceber gradualmente, pouco a pouco. Oiçam. A primeira frase do original inglês era: 'Todas as trinta e seis janelas do velho e escalavrado castelo estavam iluminadas. Em cima, no primeiro andar, no salão de baile, brilhavam quatro luxuosos lustres de cristal...' Na tradução húngara estava: 'Todas as doze janelas do velho e escalavrado castelo estavam iluminadas. Em cima, no primeiro andar, brilhavam dois luxuosos lustres de cristal...' Arregalei os olhos, e continuei a ler. Na terceira página, o escritor inglês dizia: 'Com um sorriso irónico, o conde Vicislav esvaziou a carteira bem recheada, e atirou-lhes o montante exigido, mil e quinhentas libras...'
A versão do tradutor húngaro era: 'Com um sorriso irónico, o conde Vicislav esvaziou a carteira, e atirou-lhes o montante exigido, cento e cinquenta libras...' Comecei a sentir uma suspeita de mau augúrio, que infelizmente em poucos minutos se transformou numa triste certeza. Mais abaixo, no fim da terceira página, a edição inglesa dizia: 'A condessa Eleonor estava sentada a um canto do salão de baile, vestida de gala, usando as antigas jóias de família: ostentava na cabeça a tiara de diamantes que herdara da sua tetravô, esposa de um príncipe-elei-tor alemão; no colo de alabastro brilhava um colar de pérolas opalino, e os seus dedos estavam quase hirtos com anéis de brilhantes, safiras e esmeraldas...' Para minha grande surpresa, o manuscrito húngaro reconstruiu essa descrição colorida da seguinte maneira: 'A condessa Eleonor estava sentada a um canto do salão de baile, vestida de gala...' Mais nada. Faltavam a tiara de diamantes, o colar de pérolas, os anéis de brilhantes, as safiras e as esmeraldas.
Estão a perceber o que tinha feito este nosso desgraçado colega, bem digno de melhor sorte? Pura e simplesmente roubara as jóias de família da condessa Eleonor, com a mesma imperdoável ligeireza aliviara também o conde Vicislav, aliás tão simpático, deixan-do-lhe apenas cento e cinquenta das mil e quinhentas libras, de igual forma fanara dois dos quatro lustres de cristal do salão de baile, e desviara ainda vinte e quatro das trinta e seis janelas do velho e escalavrado castelo. Sentia o mundo a girar à minha volta. O meu espanto atingiu o auge quando cheguei à conclusão, sem margem para dúvidas, de que o mesmo marcava de forma consistente e fatal todo o seu trabalho. Por onde passasse, a caneta do tradutor lesava as personagens que tinha acabado de conhecer, não poupando nem móveis, nem imóveis, violando a quase incontestavelmente sagrada propriedade privada.
Trabalhava usando diferentes técnicas. Na maior parte das vezes, os objectos de valor evaporavam-se sem deixar rasto. Dos tapetes, dos cofres e das pratas, destinados a elevar o nível literário do original inglês, não restavam nem vestígios no texto húngaro. Outras vezes surripiava só uma parte, metade ou dois terços. Se alguém mandava o criado levar cinco malas para a carruagem de comboio, ele mencionava apenas duas, e sonegava insidiosamente as restantes três. De qualquer forma, para mim o mais desolador — talvez por demonstrar verdadeira perfídia e desonestidade — era o facto de ele com frequência substituir os metais nobres e as pedras preciosas por materiais reles e sem valor, a platina por lata, o ouro por cobre e o diamante por cristal ou vidro.
Despedi-me da editora cabisbaixo. Por curiosidade pedi para ficar com o manuscrito e o original inglês. Intrigava-me o verdadeiro mistério deste policial, por isso em casa continuei a investigação e fiz o inventário dos objectos roubados. Trabalhei sem descanso da uma da tarde até às seis e meia de manhã. No fim, apurei que o transviado do nosso colega, ao longo da tradução, se tinha apropriado indevidamente e ilegalmente de 1 579 251 libras esterlinas, 177 anéis de ouro, 947 colares de pérolas, 181 relógios de bolso, 309 pares de brincos, 435 malas de viagem, sem contar com as propriedades, florestas e pastos, palácios ducais e baroniais, tal como pequenos objectos insignificantes, lenços, palitos e campainhas, que seria longo, e talvez inútil, enumerar.
Onde é que ele metia os móveis e imóveis que afinal só existiam no papel, no mundo da imaginação, e qual o objectivo do furto, seria uma questão que nos levaria longe e que por isso não vou aprofundar. Mas tudo isto me convenceu de que ele continuava escravo do seu vício delinquente ou da sua doença, que não havia esperanças de cura, e que não merecia o apoio da sociedade respeitável. Eu, na minha indignação moral, desisti dele. Abandonei-o ao seu destino. Nunca mais ouvi falar dele.
(1932)

Ficçõesde humor. Revista de contos, Lisboa,Tinta Permanente, [2003],pp. 121-129.Tradução de Agnes Jancsó C. Lopes)

681. Ler O AMANTE, de Marguerite Duras

sábado, 6 de outubro de 2012

680. Homenagem a Ricardo Reis

Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética III

679. Biblioteca


678. Confissões de um humorista

por O. Henry



Houve um estádio indolor de incubação que durou vinte e cinco anos, e depois tive um surto e as pessoas disseram que eu era o supra-sumo.
Mas chamaram-lhe humor em vez de sarampo.
Os empregados do armazém compraram um tinteiro de prata para o sócio mais velho quando fez cinquenta anos. Apinhámo-nos no gabinete dele para lho dar. Tinham-me escolhido para porta-voz e fiz um pequeno discurso que andava a preparar há uma semana.
Foi um sucesso. Era todo cheio de trocadilhos e epigramas e reviravoltas engraçadas que fizeram vir abaixo a casa, de si bastante sólida, na linha da venda de ferragens por atacado. O Marlowe propriamente dito chegou a sorrir e os empregados aproveitaram a deixa e riram à gargalhada.
A minha reputação como humorista data das nove e meia dessa manhã. Os meus colegas passaram semanas a avivar a chama do meu amor-próprio. Um a um vieram dizer-me que o meu discurso fora incrivelmente bem feito, meu caro, e explicaram-me com todo o cuidado cada uma das minhas piadas.
A pouco e pouco percebi que se esperava que eu continuasse. Outros podiam bem falar, cheios de bom senso, de negócios e dos tópicos do dia, mas de mim exigia-se uma coisa brincalhona e airosa.
Esperava-se que eu dissesse piadas sobre cerâmica e aligeirasse os granitos com graçolas. Era o segundo contabilista, e se não apresentasse um balancete com uma coisa cómica ao pé das somas ou não encontrasse motivo de riso na factura duns arados, era uma decepção para os outros empregados. Gradualmente, a minha fama espalhou-se, e tornei-me numa personagem castiça. A nossa cidade era suficientemente pequena para que isto fosse possível. O jornal diário citava-me. Eu era indispensável nas reuniões sociais.
Acredito que tivesse uma graça razoável e alguma facilidade na resposta rápida e espontânea. É um dom que cultivei e aperfeiçoei pela prática. E a natureza deste dom era bondosa e cordial, não ia para o sarcasmo nem ofendia os outros. As pessoas começavam a sorrir quando me viam aparecer, e quando chegávamos perto, já eu trazia pronta a palavra que alargava num riso o sorriso delas.
Casara cedo. Tínhamos um menino de três anos que era um encanto e uma menina de cinco. Como é natural, vivíamos numa casinha coberta de vinha e éramos felizes. O meu ordenado como contabilista no negócio das ferragens mantinha à distância os males que derivam da riqueza supérflua.
Escrevera várias vezes piadas e peças de humor que considerei especialmente felizes e enviara-as a certos jornais que publicam essas coisas. Todas foram imediatamente aceites. Houve chefes de redacção que escreveram a pedir mais colaboração.
Um dia recebi uma carta do editor de um famoso semanário. Sugeria que eu lhe mandasse um artigo humorístico para encher uma coluna que vagara, insinuando que passaria a contribuição regular caso o trabalho fosse satisfatório. Assim fiz, e ao fim de duas semanas ofereceu-me um contrato de um ano, por uma quantia bastante superior à que me pagavam na empresa de ferragens.
Fiquei deliciado. A minha mulher já me coroara, na cabeça dela, com o louro imperecível do êxito literário. Nessa noite, ao jantar, comemos rissóis de lagosta e bebemos uma garrafa de vinho de amora. Era a oportunidade de me libertar da servidão. Tive com Louisa uma conversa longa e séria. Concordámos que eu devia deixar o meu lugar no armazém, e dedicar-me ao humor. Demiti-me. Os meus colegas ofereceram-me um banquete de despedida. O discurso que ali fiz foi coruscante. Veio publicado na íntegra na Gazeta. Na manhã seguinte acordei e olhei para o relógio.
— Já é tarde, raios! — exclamei, e precipitei-me para apanhar a roupa. Louisa lembrou-me de que eu já não era um escravo das ferragens e dos fornecimentos aos construtores civis. Agora era humorista profissional.
Depois do pequeno-almoço levou-me toda orgulhosa ao quartinho ao pé da cozinha. Tão querida! Lá estavam a minha mesa e cadeira, bloco de notas, tinta e a bandeja do cachimbo. E todos os sinais exteriores do autor — o aipo com rosas acabadas de apanhar e madressilva, o calendário do ano passado na parede, o dicionário e um saquinho cheio de chocolates para ir petiscando nos intervalos da inspiração. Tão querida!
Sentei-me para trabalhar. O papel de parede tem uns arabescos, ou umas odaliscas ou — talvez — uns trapézios. Fixei os olhos numa das figuras. Pus-me a pensar em humor.
Sobressaltou-me uma voz — a de Louisa.
— Se já não tens muito que fazer, querido — dizia vem almoçar.
Olhei para o relógio. Sim, cinco horas ceifadas pela gadanha sinistra. Fui almoçar.
— Não podes trabalhar tanto logo de início — disse Louisa. — Goethe, ou terá sido Napoleão?, disse que chegavam cinco horas por dia de esforço mental. Porque não me levas a mim e aos meninos a passear ao bosque hoje à tarde?
— Estou um bocado cansado — admiti. E fomos ao bosque.
Mas cedo lhe apanhei o jeito. Passado um mês já eu fornecia texto com a mesma regularidade dos carregamentos de ferragens.
E tive sucesso. A minha coluna no semanário teve algum impacto, e na conversa de café entre críticos, referiam-se-me como uma lufada de ar fresco nas hostes dos humoristas. Aumentei bastante os rendimentos contribuindo para outras publicações.
Aprendi os truques do ofício. Conseguia pegar numa ideia engraçada, fazer uma piada de duas linhas, e ganhar um dólar. Punha-lhe umas suíças postiças, servia-a fria como quadra, duplicando-lhe o valor na produção. Virava-a do avesso e juntando-lhe um cheirinho de rima quase nem a reconheciam como vers de sociétê calçado de novo e com uma ilustração de moda.
Comecei a poupar dinheiro e comprámos tapetes novos e um órgão de sala. Os meus conterrâneos começaram a olhar-me como cidadão de alguma importância em vez do pateta alegre que eu fora enquanto trabalhava nas ferragens.
Passados cinco ou seis meses, a espontaneidade desapareceu do meu humor. Repentes e tiradas droláticas já não me saíam todas despreocupadas pela boca fora. Por vezes, faltava-me o assunto. Dei comigo à coca a ver se apanhava ideias disponíveis nas conversas dos amigos. Às vezes roía o lápis e ficava pasmado a olhar para o papel de parede horas a fio, tentando construir uma alegre bolhinha de graça espontânea.
E depois tornei-me numa harpia, um Moloch, um Jonas, um vampiro, para os meus conhecidos. Ansioso, desvairado, ávido, eu era, no meio deles, um autêntico desmancha-prazeres. Era só cair-lhes da boca um dito inteligente, uma comparação espirituosa, uma frase mordaz e eu saltava como um cão a apanhar um osso. Não ousava confiar na memória; mas virando-me um pouco de lado, culpado e mesquinho, tomava notas no meu sempre presente bloco de apontamentos ou no punho da camisa, para usar mais tarde.
Os amigos olhavam-me com pena e pasmo. Não era o mesmo homem. Onde outrora lhes fornecera entretenimento e alegria, agora caía-lhes em cima como ave de rapina. De mim já não levavam gracinhas só pelos sorrisos deles. Eram demasiado preciosas. Não me podia dar ao luxo de oferecer gratuitamente os meios da minha subsistência. Era uma raposa lúgubre louvando o canto dos meus amigos corvos para que deixassem cair dos bicos os pedaços de humor que eu cobiçava.
Quase toda a gente me evitava. Cheguei a esquecer-me de como era fazer um sorriso, e nem isso pagava pelos ditos de que me apropriava. Gente, lugares, momentos, temas, nada estava isento da minha pilhagem de material. Até na igreja, a minha fantasia amoral corria à caça, pelas coxias solenes e pelos pilares, em busca do saque.
Se o pastor falava na doxologia, eu começava logo: "Doxologia-Socodologia-Socodólogo-Metro-Meter-o".
O sermão passava-me pela peneira mental, e os preceitos morais escorriam despercebidos, se eu vislumbrasse a vaga possibilidade de um trocadilho ou de um bon mot. Os hinos mais solenes do coro eram mero acompanhamento dos pensamentos em que concebia novas maneiras de glosar velhas piadas sobre a rivalidade entre a soprano, o tenor e o baixo.
A minha própria casa passou a ser terreno de caça. A minha mulher é uma criatura muitíssimo feminina, cândida, simpática e impulsiva. No passado, deliciava-me conversar com ela e as suas ideias eram fonte de prazer constante. Agora explorava-a. Era uma mina de ouro dessas contradições engraçadas e amorosas que distinguem a mente feminina.
Comecei a fazer negócio com as pérolas de in-sabedoria e humor que deviam ter enriquecido apenas o sagrado recinto do lar. Com manha diabólica, encorajava-a a falar. Sem desconfiar, ela punha o coração nas mãos. Na fria, conspícua, baixa letra impressa, eu oferecia-o ao olhar público.
Qual Judas literário, beijava-a e traía-a. Por moedas de prata vestia-lhe as doces confidências com a roupa de baixo e os folhinhos da patetice e fazia-as dançar na praça.
Querida Louisa! Houve noites em que me debrucei sobre ela, cruel como um lobo sobre o tenro cordeiro, atento até às palavras murmuradas no sono, esperando apanhar uma ideia para a lavra esforçada do dia seguinte. Mas o pior está para vir.
Valha-me Deus! A seguir, enterrei fundo as presas nos ditos fugidios dos meus pequeninos.
Guy e Viola eram duas fontes brilhantes de pensamentos e ditos infantis e insólitos. Havia procura deste género de humor e eu fornecia regularmente uma secção duma revista com "Divertidas Fantasias da Infância". Punha-me a espreitá-los, como um índio espia um antílope. Escondia-me atrás dos sofás e das portas, ou gatinhava pelos arbustos no pátio e punha-me a escuta enquanto eles brincavam. Tinha todas as qualidades da harpia, excepto o remorso.
Uma vez, quando estava sem ideias nenhumas e tinha de enviar o texto pelo correio seguinte, cobri-me de folhas caídas no jardim, onde sabia que vinham brincar. Não posso acreditar que o Guy soubesse do meu esconderijo, mas mesmo que soubesse, detestaria ter de o censurar por deitar fogo às folhas, causando a destruição do meu fato novo, e quase cremando um progenitor.
Cedo os meus próprios filhos começaram a fugir de mim como da peste. Muitas vezes, quando me chegava a eles pé ante pé qual melancólico ladrão de sepulturas, ouvia-os a dizer um para o outro:
— Lá vem o pai — e apanhavam os brinquedos e iam a correr esconder-se num lugar mais seguro. Desgraçado miserável que eu era!
E, no entanto, estava bem, financeiramente. No primeiro ano poupara mil dólares e tínhamos vivido com conforto. Mas a que preço! Não tenho bem a certeza do que seja um pária, mas eu era tudo o que essa palavra parece indicar. Não tinha amigos, nem gozava a vida. Sacrificara a felicidade da minha família. Era uma abelha, sugando mel sórdido das mais belas flores da vida, temido e ostracizado por causa do meu ferrão.
Um dia, um homem falou comigo, com um sorriso amável e simpático. Há meses que tal não me acontecia. Passava eu no estabelecimento funerário de Peter Heffelbower. Peter estava à porta e cumprimentou-me. Parei, com o coração estranhamente apertado pelo cumprimento dele. Convidou-me a entrar.
O dia estava frio e chuvoso. Fomos para a sala das traseiras, onde havia um pequeno fogão aceso. Veio um cliente e o Peter deixou-me sozinho um bocado. De repente, senti-me tomado de um sentimento novo — uma calma maravilhosa, uma satisfação, e olhei em volta. Havia filas de caixões de roseira brilhantes, panos mortuários, tripeças, plumas de essa, flâmulas negras, e toda a parafernália do solene ofício. Aqui havia paz, ordem, silêncio, era o lugar próprio das reflexões graves e dignas. Aqui, à beira da vida, havia um nichozinho dominado pelo espírito do eterno descanso.
Quando entrei, as loucuras do mundo abandonaram-me à porta. Não senti qualquer inclinação para me esforçar por uma ideia humorística sobre tal aparato sombrio e solene. O meu espírito parecia distender-se para o grato repouso num divã recamado de pensamentos delicados.
Há um quarto de hora, eu era um humorista abandonado. Agora, era um filósofo, cheio de serenidade e à-vontade. Encontrara onde me refugiar do humor, da ardente perseguição do tímido motejo, da caça degradante à piada arquejante, da inquieta busca da resposta pronta.
Não conhecia bem Heffelbower. Quando ele voltou, deixei-o falar, temendo que ele pudesse ser uma nota dissonante na doce harmonia de hino fúnebre do seu estabelecimento.
Mas não. Estava em harmonia. Dei um longo suspiro de felicidade. Nunca encontrara conversa de homem mais magnificamente maçadora do que a do Peter. Comparada com ela, o mar Morto é um gaiser. Nunca centelha ou vislumbre de graça lhe prejudicavam as palavras. Lugares-comuns, banais e abundantes como as amoras, fluíam-lhe dos lábios, causando tanta agitação como as notícias da semana passada. Um pouco trémulo, experimentei nele um dos meus ditos mais afiados. Caiu ali mesmo, sem efeito, a ponta quebrada. Passei a adorar o homem.
Duas ou três noites por semana ia discretamente ter com o Heffelbower e divertia-me à grande na sala das traseiras. Era a minha única alegria. Comecei a acordar cedo e a trabalhar rapidamente, para poder passar mais tempo no meu porto de abrigo. Era só ali que podia largar o hábito de extrair ideias humorísticas de tudo o que me rodeava. A conversa de Peter não me deixava uma única aberta, tivesse eu tentado.
Sob tal influência, o meu estado de espírito melhorou. Era a folga do trabalho, de que todo o homem precisa. Surpreendi um ou dois dos meus antigos amigos com um sorriso e uma frase alegre ao passar por eles na rua. E por vezes fiz pasmar a família quando consegui relaxar o suficiente para fazer uma observação jocosa na presença deles.
Estivera tanto tempo obcecado pelo incubo do humor que agarrava as minhas horas de folga com o brio de um rapazinho da escola.
O trabalho começou a ressentir-se. Já não era o sofrimento e o fardo que antes fora. Muitas vezes assobiava à mesa de trabalho, e escrevia com muito mais fluência. Acabava as tarefas com impaciência tão ansioso por chegar ao salutar refúgio, como um bêbedo a taberna.
A minha mulher passou horas angustiada especulando sobre onde é que eu passaria as tardes
Achei melhor não lhe dizer; as mulheres não compreendem estas coisas. Coitada! Ainda apanhou um susto.
Um dia trouxe para casa uma pega de prata de um caixao para pesa-papéis e uma pluma muito bonita e macia tirada duma essa para limpar o pó aos meus papéis.
Gostava de as ver na secretária, e pensar na adorada sala do Heffelbower. Mas Louisa encontrou-as e gritou de horror. Tive de a consolar com uma desculpa tosca mas vi nos olhos dela que o preconceito não desaparecera' E tive de tirar dali os objectos, e muito rapidamente
Um dia, Peter Heffelbower pôs-me à frente uma tentaçao que me fez tresvairar. Naquele seu modo sensato e monótono, mostrou-me os livros e explicou que os lucros e o negócio cresciam rapidamente. Pensava arranjar um sócio com algum dinheiro. Preferia-me a mim, de toda a gente que conhecia. Quando saí de casa dele nessa tarde, já o Peter tinha o cheque dos mil dólares que eu tinha no banco, e eu era sócio dele no negócio dos enterros.
Fui para casa num sentimento de alegria delirante, e uma certa dose de dúvida. Tinha pavor de contar à minha mulher. Mas ia nas nuvens. Desistir da escrita de peças humorísticas, morder mais uma vez a polpa da vida, em vez de a espremer por umas gotitas de amargo sumo, para divertir o público — que bênção!
À mesa do jantar, Louisa deu-me umas cartas que tinham chegado na minha ausência. Algumas continham manuscritos rejeitados. Desde que começara a ir a casa do Heffelbower que os meus textos vinham devolvidos com frequência alarmante. Nos últimos tempos, despachava piadas e artigos com grande fluência. Antes disso, trabalhara como quem assenta tijolo, devagar e com sofrimento.
Abri logo uma carta do editor do semanário com que tinha contrato. Ainda dependíamos em grande medida dos cheques desse artigo semanal. A carta era assim:

Exmo. Senhor
Como sabe, o nosso contrato anual expira este mês. Embora lamentando a necessidade de o fazer, temos a dizer que não queremos renovar o contrato para o próximo ano. Estávamos muito satisfeitos com o seu estilo de humor, que parece ter deliciado uma grande quantidade de leitores.
Mas nos últimos dois meses observámos uma nítida queda na sua qualidade. Os seus primeiros trabalhos demonstravam uma corrente espontânea, fácil e natural de humor e de graça. Ultimamente, ele é trabalhado, artificial epouco convincente, prova dolorosa de trabalho árduo e repetitivo.
Lamentando mais uma vez não poder continuar a aceitar as suas contribuições, somos sinceramente
O Editor

Entreguei a carta à minha mulher. Leu-a e ficou com uma cara tristíssima e de lágrimas nos olhos.
— Malvado do velho! — disse, indignada. — As tuas peças são tão boas como eram. E não te levam nem metade do tempo a fazer.
Depois, acho eu, Louisa deve ter pensado nos cheques que iam acabar.
— Oh, John — gemeu ela o que é que vais fazer? Em resposta, levantei-me e pus-me a dançar a polka à roda da mesa. Louisa deve ter pensado que a preocupação me enlouquecera; e as crianças devem ter tido esperança de que assim fosse, porque se lançaram atrás de mim exultantes, imitando os meus passos. Agora já me parecia mais com o companheiro de brincadeira que antes fora.
— Hoje vamos todos ao teatro! — gritei. — Nada menos. E ceamos tarde, como loucos, e portamo-nos mal no restaurante Palace. Olari-lari-lolela!
E depois expliquei a minha alegria dizendo que era sócio de uma próspera agência funerária e que os artigos humorísticos podiam bem ir enfiar a cabeça em sacos de serapilheira ou enterrar-se nas cinzas, a ver se eu me ralava. Com a carta do editor na mão para justificar o que eu fizera, a minha mulher não pôde avançar com nenhuma objecção, fora algumas, mas brandas, e baseadas na incapacidade feminina para apreciar uma coisa tão boa como a sala das traseiras de Peter Hef-não, de Heffelbower & Cia, Agência Funerária.
Em conclusão, direi que hoje não encontram nesta cidade homem mais amado, jovial, cheio de ditos espirituosos, do que eu. As minhas piadas são novamente faladas e citadas; voltei a ter prazer nas confidências da minha mulher sem um pensamento mercenário, enquanto Guy e Viola brincam a meus pés, espalhando pérolas de humor infantil sem medo do homem medonho que as atormentava e perseguia como um cão, de bloco de notas em punho.
O negócio floresceu muito. Faço a contabilidade e tomo conta da agência, enquanto Peter trata das coisas no exterior. Diz que a minha ligeireza e bom humor haviam de tornar qualquer funeral num verdadeiro pandemônio.

O. Henry, «Confissões de um Humorista» in Ficçõesde humor. Revista de contos, Lisboa,Tinta Permanente, [2003], pp. 37-41. (Tradução de Luísa Costa Gomes)