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domingo, 25 de novembro de 2012

718. O amor, quando se revela,

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Fernando Pessoa

domingo, 18 de novembro de 2012

717. Ao espelho

Porque insistes, espelho permanente?
Porque duplicas, misterioso irmão,
O menor movimento desta mão?
Porquê o teu reflexo de repente?
És o outro eu de que falou o grego
E espreitas desde sempre. Na lisura
Da água incerta ou do cristal que dura
Procuras-me e é inútil eu estar cego.
O não te ver, mas o saber que existes
Acrescenta-te horror, poder com que ousas
Multiplicar o número das coisas
Que somos e as nossas sinas tristes.
Quando eu morrer, vais copiar um outro
E depois outro, outro, outro, outro...

Jorge Luís Borges

sábado, 17 de novembro de 2012

716. Há mais de meia hora

Há mais de meia hora
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo.)
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo Um volume da «Enciclopédia Britânica».
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.
Quem pudesse sintonizar tudo isto!

3-1-1935

Álvaro de Campos

715. [Mulher lendo]

Pintura de Gabriel Picart

714.As vezes tenho ideias felizes,

As vezes tenho ideias felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...

18-12-1934

Álvaro de Campos

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

710. «Ensinar é um exercício de imortalidade.

Ilustração de Ben Kimberly Prins

«Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais...»

Rubem Alves

domingo, 4 de novembro de 2012

709. Contei meus anos e descobri

Contei meus anos e descobri
Que terei menos tempo para viver do que já tive até agora….
Tenho muito mais passado do que futuro…
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de jabuticabas…
As primeiras, ele chupou displicentemente...
Mas, percebendo que faltam poucas, rói o caroço…

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades…
Inquieto-me com os invejosos tentando destruir quem eles admiram.
Cobiçando seus lugares, talento e sorte…..
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas
As pessoas não debatem conteúdo, apenas rótulos…
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos…
Quero a essência…. Minha alma tem pressa….
Sem muitas jabuticabas na bacia
Quero viver ao lado de gente humana…muito humana…
Que não foge de sua mortalidade.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade….

Rubem Alves.

708. O tempo passa? Não passa

Foto: Relogio Florido - Jardim Inglês em Genebra (suiça)

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
 cada vez mais, nos reduz
 a um só verso e uma rima
 de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
 nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
 transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
 do tempo, não tem idade,
 pois só quem ama
 escutou o apelo da eternidade.

Carlos Drummond de Andrade, iAmar se Aprende Amando

707, Para um amigo tenho sempre um relógio

Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa, Viagem Através de uma Nebulosa

706. Fernando Pessoa e Companhia


705. Ler


704.Chuva e Sol

Pintura de Justyna Kopania


Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.

Alberto Caeiro, Poemas Incomjuntos