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domingo, 30 de outubro de 2011

29. A Invenção do Amor



Proposta de escrita:
A partir da curta-metragem, cria uma narrativa.

28. Metáforas, homem!

por Antonio Skármeta

Neruda meteu a mâo ao bolso e tirou uma nota vermelha "mais que regular". O carteiro disse "obrigado", não tão aflito pela quantia como pela iminente despedida. Essa mesma tristeza pareceu imobilizá-lo a um grau alarmante. O poeta, que se dispunha a entrar, náo pôde deixar de se interessar por uma inércia tão pronunciada.
- O que tens?
- Dom Pablo?
- Ficas aí parado como um poste.
Mario torceu o pescoço e procurou os olhos do poeta de baixo a cima.
- Cravado como uma lança?
- Não, quieto como uma torre de xadrez.
- Mais tranquilo que gato de porcelana?
Neruda largou a maçaneta do portão, e acariciou o queixo.
- Mario Jiménez, além das Odes elementares tenho livros muito melhores. É indigno que me submetas a todo o tipo de comparações e metáforas.
- Don Pablo?
- Metáforas, homem!
- Que coisas são essas?
O poeta pôs uma mão no ombro do rapaz.
- Para te esclarecer mais ou menos imprecisamente, são maneiras de dizer uma coisa comparando-a com outra.
- Dê-me um exemplo.
Neruda olhou para o relógio e suspirou.
- Bem, quando tu dizes que o céu está a chorar, o que é que queres dizer?
- Que fácil! Que está a chover, pois.
- Bem, isso é uma metáfora.
- E porque é que sendo uma coisa tão fácil, se chama uma coisa tão complicada?
- Porque os nomes não têm nada a ver com a simplicidade ou complicação das coisas. Segundo a tua teoria, uma coisa pequena que voa não devia ter um nome tão comprido como mariposa. Pensa que elefante tem o mesmo número de letras que mariposa e é muito maior e não voa - concluiu Neruda exausto. Com um resto de ânimo, apontou a Mario o caminho para a calheta. Mas o carteiro ainda teve a presença de espírito para dizer:
- Poça, como eu gostava de ser poeta!

Antonio Skármeta, O Carteiro de Pablo Neruda, Lisboa, Editorial Teorema, 1986.

Atividades:
1. Sublinha as quatro comparações presentes no início do diálogo (II. 7 a 11).
2. Transforma as frases, de forma a converter as comparações em metáforas.
3. Escolhe uma das metáforas que resultou da questão anterior e utiliza-a como primeiro verso de um poema teu, de apenas quatro versos e sem rima.
4. Faz uma pesquisa sobre o poeta Pablo Neruda (Prémio Nobel da Literatura em 1971 e personagem do romance chileno de que foi retirado o excerto) e, com os dados recolhidos, redige uma nota biobibliográfica de 80 a 100 palavras.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

25. Tabacaria

por Álvaro de Campos



poema dito por João Villaret

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

(15-1-1928)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

24. Nos caminhos do teu corpo…

por José Luís Peixoto

Nos caminhos do teu corpo…
... Sulco falésias de luares felizes
Por entre campos viçosos
Onde brotam sucos amor
Flores odor fruição
Palavras escritas de mãos
E questões constantes …
De respostas únicas…nossas!
No colar do teu corpo
Beijo o infinito do rio desejo
No idílio coral da tua nascente…
De ombros caídos…
Olhos sonhadores
Purifica-se o gotejar corrente
Aninha-se o embalo
Olha-se o “barulhar” enredo
E o vapor cristaliza
Momentos mar (e)terno!

José Luís Peixoto, Da Janela do meu (a)mar (Ed. Vieira da Silva, 2011)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

22. O Astronauta e o Homem dos Descobrimentos

por Rómulo de Carvalho

Tem-se chamado à conquista espacial a maior aventura do homem. Sem pretender percutir a corda patriótica quer-me parecer que a maior aventura do homem continua a ser a dos Descobrimentos. Se fosse possível pôr as duas situações a par, e dar a escolher a um homem consciente delas, ou entrar na caravela para navegar no oceano encapelado e desconhecido, ou entrar no foguetão para dar tantas voltas à Terra e regressar, o natural seria desejar ser posto em órbita. O homem que navega no espaço continua em íntimo contacto com o planeta de que se afastou, comunica com ele, fala com os que cá ficaram, ouve e responde, recebe ordens, diz gracejos em prosa ou em verso e tem a certeza de que a probabilidade de sofrer um desastre é extremamente pequena porque vai amparado com todo o poderoso saber da Técnica e sabe que todos têm os olhos ou o pensamento nele para o socorrerem, se for preciso. Esses não estão sós, nem perdidos, nem aflitos. Estão a executar uma missão de alta relevância, em que o mínimo depende deles próprios e o máximo dos que estão ausentes mas a observá-los.
Que diferença para os navegadores dos Descobrimentos! Esses, saíam do Restelo e enquanto vissem a orla da praia estavam ligados ao mundo; mas, desaparecida ela, eram homens totalmente perdidos de quem ninguém mais sabia, nem os outros deles nem eles dos outros. Cada um dos que ficavam ia à sua vida pelas ruelas da cidade mourejando o seu pão, e eles, os navegadores, tanto podiam ir para o fundo das águas, como arribarem nas ilhas verdes e serem cortados às postas, como tornarem-se reis dos indígenas, que ninguém sabia de nada. Era o abandono total. Era a fome, a sede, o escorbuto, a agonia, a revolta, a traição, a morte lenta e raivosa, sem remissão possível, o bambolear enjoativo e incansável do madeiro sobre as águas. Passavam-se meses, um ano, dois anos. As vezes sucedia voltarem e então vinham contar o que tinham passado. Tinham passado a maior aventura de todos os tempos, e, além disso, vinham sabendo que havia no mundo homens de outras cores, organizados segundo outras formas de sociedade, em que a moral era diferente, os valores humanos outros, os deuses outros, e que a Terra era redonda e que girava em torno do Sol como qualquer outro insignificante planeta. Sentavam-se na praia a pensar nisso e tinham nos olhos o brilho de um homem novo.

Rómulo de Carvalho, «O Astronauta e o Homem dos Descobrimentos», O Comércio do Porto

domingo, 23 de outubro de 2011

21. A menina que odiava livros


Era uma vez uma menina chamada Mina. Se, num livro, procurassem o significado do seu nome, descobririam que significa «peixe» em antigo sânscrito. Mas Mina não sabia, porque nunca procurava o significado de nada em lado nenhum. Mina detestava ler e detestava livros.
— Estão sempre no meio do caminho — dizia ela.
E era verdade, porque em sua casa havia livros por todo o lado. Não apenas nas prateleiras e nas mesinhas-de- cabeceira, onde normalmente há livros, mas em todos os lugares onde geralmente não há livros.
Havia livros dentro de cristaleiras, de cómodas e de roupeiros, em guarda-fatos e em armários e dentro de arcas. Havia livros em cima do sofáe livros nas escadas, livros a abarrotar dentro da lareira e empilhados em cima de cadeiras.
E o pior de tudo era que os pais de Mina estavam sempre a trazer MAIS livros para casa. Passavam a vida a comprar livros, a trazer livros da biblioteca e a encomendar livros através de catálogo. Liam ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. Mas quando perguntavam à Mina se ela queria ler, ela fazia uma birra e gritava:
—Eu detesto livros!
E quando, em voz alta, tentavam ler-lhe uma história, ela tapava os ouvidos com as mãos e gritava ainda mais alto
— EU DETESTO LIVROS!
Havia provavelmente um só ser no mundo que, ainda mais do que Mina, detestava livros. Era o seu gato, Max. Há muito tempo, quando ele era ainda gatinho, caiu-lhe um atlas em cima da cauda. Ficou com a cauda dobrada como um limpa-cachimbos. Desde então, procurava sempre ficar em cima dos livros em vez de ficar debaixo deles.
Uma manhã, depois de ter tirado todos os livros do lavatório para lavar os dentes, Mina foi à cozinha preparar o pequeno-almoço para si e para o Max. Primeiro, subiu para cima de uma pilha de volumes de uma enciclopédia, para conseguir chegar aos cereais. Depois, abriu o frigorífico e afastou um monte de revistas para retirar o leite. Deitou um pouco de leite para si e um pouco para o Max.
— Max! — chamou ela. — O pequeno-almoço está pronto!
Mas o Max não aparecia. Tentou novamente.
— Max! — chamou ela. — O pequeno-almoço está pronto! — E ele continuava sem aparecer.
— Onde poderá estar? — pensou a Mina.
Procurou na banheira e atrás do secador da roupa. Procurou debaixo das escadas e em cima do relógio. Encontrou mais livros, mas não encontrou o Max. Subitamente, ouviu um grande "Miaaaaaaauu!" Correu para a sala de jantar, e lá estava ele, no cimo da pilha de livros mais alta da casa, sem conseguir descer. Esta pilha era formada por todos os livros que os pais estavam sempre a comprar-lhe e que ela sempre se recusava a ler.
No fundo da pilha estavam grandes livros ilustrados, como novos, do tempo em que Mina era bebé. No meio, havia livros com o alfabeto e canções de embalar. Em cima, mesmo ao nível do tecto, havia contos de fadas e histórias de aventuras. Os livros estavam todos cobertos de pó.
— Não te preocupes, Max — gritou-lhe Mina. — Eu vou salvar-te!
E começou a trepar pela pilha de livros acima. De início, foi fácil, porque os livros ilustrados tinham capas duras, e era como se estivesse a subir umas escadas. Mas quando Mina chegou aos livros de capa mole, falhou-lhe o pé num livro de poemas, perdeu o equilíbrio e começou a escorregar.
CATRAPUM! Os livros foram pelos ares. Caíram por todos os lados, as lombadas abriram-se pela primeira vez, e as páginas separaram-se. À medida que os livros iam caindo, iam acontecendo coisas estranhas. Pessoas e animais começaram a cair das páginas e a rebolar pelo chão. Caíam uns em cima dos outros, espalhando os livros e fazendo tombar as cadeiras.
Havia príncipes e princesas, fadas e rãs. E, depois, um lobo e três porquinhos e um troll traquinas em cima de um tronco. O Humpty Dumpty foi pelos ares e depois partiu-se ao meio, por detrás da Mãe-Pata e de uma girafa roxa. Havia elefantes, imperadores, avestruzes e duendes, e uma variedade de macacos, todos emaranhados uns nos outros. Mas acima de tudo havia coelhos, por todos os lados. Coelhos selvagens, coelhinhos brancos e coelhos de chapéu.
Mina sentou-se no meio daquilo tudo, demasiado surpreendida para se mexer.
— Eu pensava que os livros estavam cheios de palavras, não de coelhos! — disse ela, quando caíram mais seis coelhos aos trambolhões de um livro ao seu lado.
Agora, ela já não reconhecia a sala de jantar. O elefante estava equilibrado, em cima de uma mesa de café, a fazer malabarismos com os pratos do melhor serviço. Os macacos tinham arrancado as cortinas e feito delas capas. E os coelhos mordiscavam as pernas da mesa.
— Parem! — gritou Mina. — Voltem para os vossos livros!
Mas havia tantos latidos e grunhidos e passos pesados, que ninguém a ouviu falar. Mina pegou no coelho que estava mais perto dela e tentou metê-lo dentro de um livro de cozinha, mas ele assustou-se tanto que se contorceu, escapou-se-lhe das mãos e fugiu. Ela abriu outro livro, de onde saíram quatro patos a voar. Voltou a fechá-lo.
— Isto não vai resultar — disse Mina. — Não sei a que livro pertence cada um deles. — Pensou por um minuto. — Já sei — disse ela. — Vou perguntar a todos onde pertencem.
Começou por uma criatura estranha que não reconhecia de todo.
— Quem és tu? — perguntou ela.
— A é de Aardvark! — disse o animal, zangado, e afastou-se à procura do livro do Alfabeto.
Ela encontrou um lobo a chorar debaixo da mesa da sala de jantar e perguntou-lhe onde é que ele pertencia.
— Não me recordo se sou do Capuchinho Vermelho ou dos Três Porquinhos! —disse ele a chorar e assoou- se à toalha da mesa. Mas Mina não podia ajudá-lo, porque nunca lera nenhuma das histórias.
Então teve outra ideia. Agarrou no livro que estava mais perto de si e começou a ler em voz alta.
— Era uma vez — começou Mina. — Numa terra muito, muito distante...
Devagar, os animais pararam de saltar e de uivar e de falar depressa e de conversar. Aproximaram-se dela para ver o que ia acontecer. Passado pouco tempo, estavam todos sentados em círculo à sua volta, a ouvi-la ler. Quando Mina chegou ao cimo da segunda página, os porcos que estavam no círculo levantaram-se de um pulo.
— Somos nós! — gritaram eles — É a nossa página! Esse é o nosso livro!
Saltaram do círculo, pularam para o colo de Mina e desapareceram dentro dele. Mina fechou-o, antes que eles pudessem pular outra vez cá para fora. Pegou noutro livro de histórias. Um a um, começou a ler todos os seus livros. E, um a um, os animais encontraram o livro a que pertenciam. Por fim, ficou na sala apenas um coelhinho vestido com um casaquinho azul. Mina agarrou no livro devagar. Era A História de Pedro Coelho (The Tale of Peter Rabbit, em inglês).
— Talvez eu possa ficar com este coelho para mim — pensou .
Estava a começar a sentir-se sozinha, agora que todos se tinham ido embora. Mas o coelho ficou à frente de Mina, apoiando-se ora numa pata, ora noutra, nervoso, mexendo o nariz peludo. Estava ansioso por regressar a casa. Então, com um grande suspiro, Mina abriu o último livro. O coelho saltou lá para dentro, abanou a cauda e desapareceu.
A casa ficou em silêncio. O Max estava sentado em cima de uns livros, a lavar a cara. Mina suspirou:
— Nunca mais vou voltar a ver aqueles coelhos! — disse ela.
Em seguida, reparou que os livros ainda ali estavam, à sua volta. Começou a sorrir. Quando os pais chegaram a casa nessa tarde, custou-lhes a acreditar no que estavam a ver. Não era por as cortinas terem desaparecido e por os pratos estarem partidos, e as pernas da mesa, roídas. Mas sim porque ali mesmo, no meio da sala, estava Mina. E estava a ler um livro.

Manjusha Pawagi A menina que detestava livros lisboa, Terramar, 2005

20. Ai, Margarida

por Álvaro de Campos



(poema dito por Sinde Filipe)

Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
— Tirava os brincos do prego,
Casava c'um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
— (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
— Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
— Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

sábado, 22 de outubro de 2011

19. Adjetivação

Por José Luís Peixoto

(...)com a mesma pressa, o meu tio saiu da taberna, liderando um grupo de homens esfarrapados, trôpegos, velhos, tortos e aleijados.

José Luís Peixoro, Cemitério de Pianos, Lisboa, Livraria Bertrand, 2006, p.27

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

18. Sábios como Camelos

por José Eduardo Agualusa

Há muitos anos viveu na Pérsia um grão-vizir - nome dado naquela época aos chefes dos governos -, que gostava imenso de ler. Sempre que tinha de viajar ele levava consigo quatrocentos camelos, carregados de livros, e treinados para caminhar em ordem alfabética.
O primeiro camelo chamava-se Aba, o segundo Baal, e assim por diante, até ao último, que atendia pelo nome de Zuzá. Era uma verdadeira biblioteca sobre patas. Quando lhe apetecia ler um livro o grão-vizir mandava parar a caravana e ia de camelo em camelo, não descansando antes de encontrar o título certo.
Um dia a caravana perdeu-se no deserto. Os quatrocentos camelos caminhavam em fila, uns atrás dos outros, como um carreirinho de formigas. À frente da cáfila, que é como se chama uma fila de camelos, seguiam o grão-vizir e os seus ministros. Subitamente o céu escureceu, e um vento áspero começou a soprar de leste, cada vez mais forte. As dunas moviam-se como se estivessem vivas. O vento, carregado de areia, magoava a pele. O grão-vizir mandou que os camelos se juntassem todos, formando um círculo. Mas era demasiado tarde. O uivo do vento abafava as ordens. A areia entrava pela roupa, enfiava-se pelos cabelos, e as pessoas tinham de tapar os olhos para não ficarem cegas. Aquilo durou a tarde inteira. Veio a noite e quando o Sol nasceu o grão-vizir olhou em redor e não foi capaz de descobrir um único dos quatrocentos camelos. Pensou, com horror, que talvez eles tivessem ficado enterrados na areia. Não conseguia imaginar como seria a vida, dali para a frente, sem um só livro para ler. Regressou muito triste ao seu palácio. Quem lhe contaria histórias?
Os camelos, porém, não tinham morrido. Presos uns aos outros por cordas, e conduzidos por umjovem pastor, haviam sido arrastados pela tempestade de areia até uma região remota do deserto.
Durante muito tempo caminharam sem rumo, aos círculos, tentando encontrar uma referência qualquer, um sinal, que os voltasse a colocar no caminho certo. Por toda a parte era só areia, areia, e o ar seco e quente. À noite as estrelas quase se podiam tocar com os dedos.
Ao fim de quinze dias, vendo que os camelos iam morrer de fome, o jovem pastor deu-lhes alguns livros a comer. Comeram primeiro os livros transportados por Aba, ou seja, todos os títulos começados pela letra A. No dia seguinte comeram os livros de Baal. Trezentos e noventa e oito dias depois, quando tinham terminado de comer os livros de Zuzá, viram avançar ao seu encontro um grupo de homens. Eram as tropas do grão-vizir.
Conduzido à presença do grão-vizir o jovem guardador de camelos, explicou-lhe, chorando, o que tinha acontecido. Mas este não se comoveu:
- Eras tu o responsável pelos livros - disse -, assim, por cada livro destruído passarás um dia na prisão.
O guardador de camelos fez contas de cabeça, rapidamente, e percebeu que seriam muitos dias. Cada camelo carregava quatrocentos livros, então quatrocentos camelos transportavam cento e sessenta mil! Cento e sessenta mil dias são quatrocentos e quarenta e quatro anos. Muito antes disso morreria de velhice na cadeia.
Dois soldados amarraram-lhe os braços atrás das costas. Já se preparavam para o levar preso, quando Aba, o camelo, se adiantou uns passos e pediu licença para falar:
- Não façais isso, meu senhor - disse Aba dirigindo-se ao grão-vizir - esse homem salvou-nos a vida.
O grão-vizir olhou para ele espantado: - Meu Deus! O camelo fala!...
- Falo sim, meu senhor - confirmou Aba, divertido com o incrédulo silêncio dos homens - Os livros deram-nos a nós, camelos, a ciência da fala.
Explicou que, tendo comido os livros, os camelos haviam adquirido não apenas a capacidade de falar, mas também o conhecimento que estava em cada livro. Lentamente enumerou de A a Z os títulos que ele, Aba, sabia de cor. Cada camelo conhecia de memória quatrocentos títulos:
- Liberta esse homem - disse Aba -, e sempre que assim o desejares nós viremos até ao vosso palácio para contar histórias.
O grão-vizir concordou. Assim, a partir daquele dia, todas as tardes, um camelo subia até ao seu quarto para lhe contar uma história. Na Pérsia, naquela época, era habitual dizer-se de alguém que mostrasse grande inteligência:
- Aquele homem é sábio como um camelo.
Isto foi há muito tempo. Mas há quem diga que, quando estão sozinhos, os camelos ainda conversam entre si.
Pode ser.

José Eduardo Agualusa, Estranhões e Bizarrocos, 2.ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 2000.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

17. Amor é fogo que arde sem se ver

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Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões
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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

16. A Lenda da Pintura

Por Michel Tournier

Era uma vez um califa de Bagdade que queria mandar decorar as paredes do salão nobre do seu palácio. Convocou dois artistas, um do Oriente, outro do Ocidente. O primeiro era um célebre pintor chinês que nunca saíra da sua província natal. O segundo, um grego, visitara todas as nações e aparentemente falava todas as línguas. Não se limitava à pintura Era igualmente versado em astronomia, física, química e arquitectura. O califa explicou aos dois o seu propósito confiou a cada um deles uma das paredes do salão nobre.
— Quando tiverdes terminado, disse, a Corte reunir-se-á com toda a pompa. Examinará e comparará as vossas obras e a que for considerada mais bela valerá ao seu autor enorme recompensa.
Depois, virando-se para o grego, perguntou-lhe de quanto tempo precisaria para concluir o seu fresco. E misteriosamente o grego respondeu-lhe: "Quando o meu confrade chinês tiver terminado, eu terei terminado também. Então o califa interrogou o chinês, que solicitou um prazo de três meses.
— Bem, disse o califa. Vou mandar dividir a sala em duas por meio de uma cortina a fim de que não vos incomodeis um ao outro, e dentro de três meses voltaremos a encontrar-nos.
Os três meses passaram, e o califa convocou de novo os dois pintores. Virando-se para o grego, perguntou-lhe: "Terminaste?" E misteriosamente o grego respondeu-lhe: "Se o meu confrade terminou, eu também terminei." Então o califa interrogou o chinês que respondeu: "Terminei."
A corte reuniu-se dois dias depois e dirigiu-se com grande expectativa para a sala de honra a fim de julgar e comparar as duas obras. Era um cortejo magnífico em que só se viam vestidos bordados, penachos de plumas, jóias de ouro, armas trabalhadas. Todos se concentraram em primeiro lugar do lado da parede pintada pelo chinês. Ressoou um só grito de admiração. O fresco representava com efeito um jardim de sonho com árvores floridas e pequenos lagos em forma de feijões atravessados por belas pontezinhas. Uma visão paradisíaca que os olhos não se cansavam de contemplar. O encanto de alguns era tão grande que propunham declarar o chinês vencedor do concurso, sem sequer terem visto a obra do grego.
Mas logo a seguir fez correr a cortina que separava as duas metades da sala, e a massa dos visitantes virou-se para o outro lado. Virou-se para o outro lado e deixou escapar uma exclamação de maravilhado assombro.
Que fizera o grego? Nada pintara. Contentara-se com instalar um grande espelho que partia do chão e subia até ao tecto. E, bem entendido, esse espelho reflectia o jardim do chinês nos seus mínimos pormenores. Mas então, hão-de dizer-me, em que é que essa imagem era mais bela e mais comovente do que o seu modelo? Porque o jardim do chinês era deserto e vazio de habitantes, ao passo que, no jardim do grego, se via uma multidão magnífica com vestidos bordados, penachos de plumas, jóias de ouro e armas trabalhadas. E toda essa gente se mexia, gesticulava e se reconhecia espantada.
Por unanimidade, o grego foi declarado vencedor do concurso.

Fonte: Michel Tournier, Uma Ceia de Amar, Publicações Dom Quixote.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

14. Discurso do Antiditador

O discurso político que se segue é muito particular.Trata-se da cena final do filme O Grande Ditador, de 1940, no qual Charlie Chaplin satiriza as terríveis ditaduras que então dominavam a Europa, particularmente, através de um arremedo da figura de Hitler.
Nesta cena, o suposto ditador, que afinal é um simples barbeiro judeu, coincidentemente igual ao próprio ditador, faz um discurso que, é claro, não é nada daquilo que se esperava.Ouve, com muita atenção, o discurso e observa o orador.

Tópicos de análise:
• Tema.
• Estrutura Interna (dois momentos).
• Alterações verificadas, do 1.º para o 2.º momento no que diz respeito a:
- entoação e altura da voz;
- ritmo do discurso;
- expressividade do olhar e dos gestos.


domingo, 16 de outubro de 2011

13. Bons Livrois e Maus Livros

por António Lobo Antunes

Há dois universos: há o universo que está à nossa volta e o universo que está dentro de nós. Um mau livro para mim é aquele que fala do universo que está à nossa volta. Um bom livro para mim é aquele que fala do que está dentro de nós e em que, ao lê-lo, me veja a mim mesmo, em que as páginas se tornam espelhos e me revelam a mim mesmo e me mostram quem eu sou e me ajudam a viver e me enchem de beleza.

António Lobo Antunes em entrevista à RTP (14-10-2011)

12. Pequena elegia chamada domingo

O domingo era uma coisa pequena.
Uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mãos
estavam os montes e os rios
e as nuvens.
Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.

Hoje os montes e os rios
e as nuvens
não vêm nas tuas mãos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios ...)
O domingo está apenas nos meus olhos
e é grande.
Os montes estão distantes e ocultam
os rios e as nuvens
e as rosas.

Eugénio de Andrade

Linhas de Leitura
1. Apresenta a relação de sentido entre o título e o poema.
2. As sirtuações representadas na primeira estrofe e na segunda opõem-se. Explica porquê.
3. Comenta os efeitos expressivos da repetição e dos polissíndetos presentes nos versos 5-6. 9-1013-14 e 18-19.
4. Analisa o valor simbólicos dos elementos da natureza. (se necessário, consulta um dicionário de símbolos)

sábado, 15 de outubro de 2011

11. Ai Flores, ai flores do verde pino

.


- Ai, flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai, Deus, e u é?

Ai, flores, ai, flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi à jurado?
Ai, Deus, e u é?

-Vós me preguntades polo vosso amigo?
E eu ben vos digo que é sano e vivo.
Ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades polo vosso amado?
E eu ben vos digo que é vivo e sano.
Ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é sano e vivo
e seerá vosco ante o prazo saido.
Ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é vivo e sano
e seerá vosco ante o prazo passado.
Ai, Deus, e u é?

D. Dinis

10. Retrato

O meu perfil é duro como o perfil do mundo.
Quem adivinha nele a graça da poesia?
Pedra talhada a pico e sofrimento,
É um muro hostil à volta do pomar.
Lá dentro há frutos, há frescura, há quanto
Faz um poema doce e desejado:
Mas quem passa na rua
Nem sequer sonha que do outro lado
A paisagem da vida continua.

Miguel Torga

9. Amigos Verdadeiros

por Pepetela

É bom ter amigos verdadeiros, apesar das dolorosas verdades que arriscamos ouvir.

Pepetela, O Planalto e a Estepe, Alfragide, 2009, p. 67.

8. As palavras carinhosas são amansadas pelo tempo

por Pepetela


A primeira vez que lhe chamei querida, a palavra me tinha queimado os lábios. E deve ter destruído os tímpanos dela. Depois perdeu a força, com a rotina, já não fazia os mesmos estragos na boca de um e no ouvido da outra.
As palavras carinhosas são infelizmente amansadas pelo tempo.

Pepetela, O Planalto e a Estepe, Alfragide, 2009, p. 58.

7. Alguém sabe mesmo o que amor é?

por Pepetela

O nome é pesado e nem sempre corresponde à realidade. Os documentos tratando dele devem ocupar uma cidade inteira e no seu todo há ambiguidades. Alguém sabe mesmo o que amor é?

Pobre é o amor
Que pode ser contado.
(William Shakespeare)

Estou a arriscar muito, portanto, tentando contar a minha estória de amor. Passamos a vida a tentar descobrir, alguns vivem mesmo só para o encontrar. Já sem falar nos escritores, que fizeram dele o tema inesgotável para poemas e romances. Uns tantos apenas no fim da vida percebem nunca com ele terem cruzado, para além dos inevitáveis equívocos. Outros, pelo contrário, descrentes de tudo desde a mais tenra idade, se surpreendem no leito de morte a sonhar com uma menina que afinal preencheu as suas vidas. Na maior parte dos casos, leva-se a verdade para a tumba. Se verdade houver.
Que há de verdade no amor?
A mesma verdade que existe na verdade. Se consome pelo uso. Ou se reforça pela ausência. Ou nem uma coisa nem outra. O mistério permanece e nos espanta sempre.
Para quê então falar no que não se pode perceber?

Pepetela, O Planalto e a Estepe, Alfragide, 2009, pp.53-54.

6. O Quarto Anjo

por José Eduardo Agualusa

Após criar o primeiro anjo, Deus ofereceu-lhe um poderoso par de asas. Explicou-lhe que aquilo era mais um aparato de fé do que de voo.
− Os pássaros - assegurou-lhe - voam por convicção.
O anjo viu como voavam os pássaros, batendo as asas e recolhendo as pernas, e imitou-os. Ao fim de cinco meses tinha ganho uma certa prática e até já conseguia fazer algumas piruetas, incluindo voo picado seguido de um duplo mortal invertido. Não era ainda uma águia, mas também não poderia ser confundido com uma galinha. Enfim, voava.
− Agora tira-as. - Disse-lhe então Deus, que o observara, em silêncio, a uma distância discreta, durante todos aqueles dias. - Tira as asas e voa.
O anjo olhou para Ele incrédulo. Protestou:
− E eu lá sou doido, ó Deus?! Tiro porra nenhuma!
Deus, o qual, como se sabe, é brasileiro, não estranhou nem que o anjo falasse português, nem sequer o forte sotaque carioca. A língua e o sotaque, aprendera-as com Ele. Compreendeu, todavia, que lhe faltava o essencial, a fé, além de uma educação um pouco mais esmerada, pois, bem vistas as coisas, tratava-se de um anjo, ainda que numa fase de iniciação, e num rápido gesto de enfado, descriou-o.
O segundo anjo era, sem dúvida, um sujeito mais cordato e delicado. Muito loiro e frágil. Muitíssimo anjo. Tinha uma cabeleira comprida, que gostava de trazer sempre limpa e entrançada, num gracioso rabo-de-cavalo. Aprendeu a voar mais depressa do que o primeiro, com uma técnica original, que deixava os pássaros envergonhados. Porém, quando Deus lhe pediu que tirasse as asas e se lançasse assim, inteiramente nu, de um penhasco altíssimo, também ele recusou.
- Ai Deus! Saiba o Senhor que isso eu não faço. Com o seu perdão, faço qualquer coisa, qualquer coisa, entende?, faço qualquer coisa, mas isso não faço, não.
Disse aquilo com voz trémula e humilde, sem sombra de arrogância, de forma que o Criador se apiedou dele e o deixou ir. O anjo pintou as asas de cor-de-rosa choque e juntou-se a um bando de flamingos. Dizem que ainda hoje é possível ver, em certos crepúsculos inflamados, nalgum palude perdido de África, um anjo voando, com singular elegância, entre uma nuvem de flamingos. Voando e rindo. Eu nunca o vi, mas pode ser.
O terceiro anjo fê-lo Deus mais prático e destemido. Usava um bigode curvo e era respeitoso e de poucas palavras. Voava sem esforço, mas também sem agrado. Pousava nos ramos das mangueiras, ou de outras árvores igualmente altas e frondosas, e era capaz de ficar por ali, sentado, tardes inteiras, a cofiar o forte bigode, a comer mangas e a fruir a sombra fresca e o canto das aves. Quando Deus lhe pediu que subisse ao penhasco e que tirasse as asas e saltasse, não o contestou. Não disse nada. Voou até ao penhasco, tirou as asas e saltou. Ficou claro, naquele trágico instante, que o que lhe sobrava em disciplina faltava-lhe em fé. Ou melhor, como Deus lhe tentou explicar enquanto ele caía, vertiginosamente, de encontro ao gume feroz das rochas, lá muito em baixo, o problema é que colocara toda a sua fé no instrumento ao invés de a colocar no objetivo. O impacto foi devastador.
O Senhor Deus ficou desgostoso com o novo desaire. Levou muito tempo a recuperar-se. Por fim tentou de novo. Saiu-lhe, à quarta tentativa, um anjo alegre, até um pouco simplório, que gostava sobretudo de cantar e de dançar, artes, aliás, que ele próprio havia inventado. Para voar não parecia possuir grande talento. Todavia, quando Deus lhe sugeriu que tirasse as asas e tentasse voar sem elas, usando o esforço da fé, ele apenas perguntou, atordoado:
- E é possível?
Depois largou as asas, espreitou o fundo abismo, fechou os olhos, e imaginou que por dentro do seu corpo outras asas se desenrolavam e batiam. Foi com essas, um tanto torto, um outro tanto tonto, que se ergueu no céu.
Deus alegrou-se. Depois dele fez muitos outros anjos, legiões e legiões, mas poucos, muito poucos foram capazes de imitar o número quatro. Diz-se que esse anjo sem asas se passeia entre nós, como uma espécie de agente secreto. Um observador num campo de batalha. Uma testemunha incógnita.
Provavelmente o anjo número dois é mais feliz.

José Eduardo Agualusa, A Educação Sentimental dos Pássaros, Alfragide, Publicações D. Quixote», 2011, pp. 55-57.

5. Elefantes velhos (Hipérbole)

A minha primeira ocupação, ainda criança, foi lavar os elefantes. Tarefa árdua, sobretudo porque os nossos, e eram três, já tinham todos mais de meio século, e rugas tão profundas que as escovas se perdiam nelas.

José Eduardo Agualusa, Educação Sentimental dos Pássaros, Alfragide, Publicações D. Quixote», 2011, pp. 55-57.

4. Uma Pessoa Quase Normal

por José Eduardo Agualusa


O senhor Mesquita tinha a certeza de que à noite se transformava num tubarão-martelo. Tirando tal convicção, que a família acatava com serena bonomia, o senhor Mesquita passava por ser uma pessoa quase normal. É verdade que acordava asfixiado todas as manhãs, e que levava alguns segundos até conseguir adaptar-se ao novo ambiente. A seguir barbeava-se, vestia-se, lia o jornal enquanto bebia café e trincava torradas, e quando saía de casa, a pé, em direção ao emprego, a uns duzentos metros, se tanto, na esquina mais próxima, já era inteiramente um homem.
Um homem comum.
Até ao dia em que no caminho para o emprego um toxicodependente lhe encostou uma navalha vermelha, de ponta e mola, ao estômago, e o senhor Mesquita lhe devorou o braço direito, incluindo a navalha.
A vida de Júlio Baltazar mudou por completo na manhã em que perdeu o braço direito e uma navalha.
Até àquele dia, Júlio Baltazar nunca tivera objetivos na vida. Apaixonara-se aos dezasseis anos por uma colega, Joana, rapariga bonita e inteligente, porém um tanto alheada, que ocupava a maior parte do tempo a comunicar com as plantas através da ingestão de cogumelos alucinógenos, ou da inalação do fumo de folhas de diferentes variedades de cânhamo. Júlio Baltazar nunca conseguiu comunicar com as plantas. Um dia Joana partiu para a índia, seguindo as indicações de um repolho, e Júlio abandonou a agricultura biológica e as saudáveis caminhadas pelos bosques à procura de cogumelos. Passou então a consumir substâncias químicas nada recomendáveis. Não demorou a desistir dos estudos, iniciando uma incerta carreira como arrumador de automóveis. Para arredondar o salário comprou uma bela navalha vermelha, de ponta e mola, passando a exibi-la, na rua, a pessoas desacompanhadas. O senhor Mesquita foi a quinta pessoa a quem Júlio Baltazar mostrou a navalha e a primeira que a comeu. No hospital, atordoado, incapaz de compreender exatamente o que lhe acontecera, o arrumador de automóveis jurou abandonar para sempre os exercícios químicos. Voltou a estudar, formando-se em psicologia clínica. Uma tarde surgiu-lhe no consultório um homem de perfil afiado, inclinado para diante, como se o puxasse o futuro. Sentou-se e disse ao que vinha:
- Sou um tubarão!
O doutor Júlio Baltazar estremeceu. Recordou-se da manhã em que perdera o braço direito. Talvez aquela figura tivesse irrompido de algum recanto em ruínas do seu cérebro, resultado do tempo em que abusara das drogas - uma maldita alucinação retroativa. Ou não. Ali, no consultório, surgiam-lhe todas as semanas as mais curiosas personagens. Conhecera um sujeito que se sentia sexualmente atraído por piscinas. Outro por volkswagens. Um terceiro tomava chá, todas as tardes, no cemitério, com a mãe defunta. Havia os que se julgavam capazes de comunicar com o diabo, e muitos (muitos, mesmo) que haviam sido raptados por extraterrestres e, depois de soltos, se mantinham em contacto com eles. Respirou fundo:
− Que género de tubarão?
O homem inclinou-se ainda mais para diante:
− Sphyrna lewisi - soprou. - O senhor conhece?
Sorriu, e Júlio Baltazar viu-lhe os dentes. Era demasiado tarde para sentir medo. O psicólogo compreendeu, num relâmpago, que se preparara para aquilo metade da vida. Abriu devagar a gaveta esquerda da secretária e tirou a pistola.

José Eduardo Agualusa, «Disse chamar-se Escuridão», in A Educação Sentimental dos Pássaros, Alfragide, Publicações D. Quixote», 2011, pp. 55-57.

3. [Escrita]

por Vergílio Ferreira

Ele:
- Ninguém escreve em Portugal como eu.
E o outro:
- Ainda Bem.


Vergílio Ferreira, Pensar, Venda Nova, Livraria Bertrang, 1997, p. 132.

2. [Todos os homens ficam maricas quando têm gripe]


por António Lobo Anyunes

Pachos na testa
Terço na mão
Uma botija
... Chá de limão
Zaragotoas
Vinho com mel
3 aspirinas
Creme na pele

Dói-me a garganta
Chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer
Mede-me a febre
Olha-me a goela
Cala os miúdos
Fecha a janela

Não quero canja
Nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes
Não vales nada
Se tu sonhasses
Como me sinto
Já vejo a morte
Nunca te minto

Já vejo o inferno
Chamas diabos
Anjos estranhos
Cornos e rabos
Vejo os demónios
Nas suas danças
Tigres sem litras
Bodes de tranças

Choros de coruja
Risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes
Que foi aquilo
Não é chuva
No meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes
Fica comigo

Não é o vento
A cirandar
Nem são as vozes
Que vêm do mar
Não é o pingo
De uma torneira
Põe-me a santinha
À cabeceira

Compõe-me a colcha
Fala ao prior
Pousa o Jesus
No cobertor
Chama o doutor
Passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes
Nem dás por nada

Faz-me tisanas
E pão de ló
Não te levantes
Que fico só
Aqui sozinho
A apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

1. Disse chamar-se Escuridão

por José Eduardo Agualusa


Disse chamar-se Welema, nome que em umbundo significa Escuridão. Nenhum de nós o contestou. Ninguém se riu. Faltou-nos coragem. O rapaz tinha um jeito desagradável de lamber os lábios, e uns pequenos olhos piscos e pérfidos que sustentavam com dificuldade o fulgor da tarde. Perguntou se podia jogar connosco, e, embora não houvesse lugar para ele, dissemos-lhe que sim e um de nós abandonou o campo e foi sentar-se na areia, à sombra esparsa e verde de um coqueiro.
Escuridão não podia ser considerado um bom jogador, pelo contrário, tirando a rapidez. Ficávamos a vê-lo passar como um clarão, a áspera cabeleira da cor do capim seco e a pele luminescente, que dali a dez anos estaria já semeada de sinais e manchas noturnas, como a casca de uma banana demasiado madura. Naquela época, porém, Escuridão tinha apenas onze anos, como todos nós, e a pele - insisto - brilhava à luz do sol, límpida e lisa, semelhante à dos anjos loiros nos manuais da catequese.
Ainda aplaudimos os quatro primeiros golos. Ao quinto, porém, erguemos o sobrolho, sentados à sombra verde do coqueiro, e soltámos um sonoro muxoxo de desprezo: «Afinal!»
Não mais do que isso. Ninguém se atreveu a questionar os golos. Alguma coisa nele nos amedrontava, embora não soubéssemos precisar o quê. Sim, depois discutimos isso. Discutimos durante anos. No fundo dos olhos piscos morava uma aranha na sua teia. Ou então seria aquele jeito desagradável que ele tinha de passar a língua pelos lábios, «tipo cobra», como lembrou um de nós. Ou ainda a voz demasiado aguda, como um giz riscando a ardósia. O rapaz foi aparecendo nas tardes de sábado, e ganhava sempre, fosse qual fosse o jogo, futebol, berlinde, corrida de bicicleta, dominó ou braço-de-ferro.
Escuridão não discutia, não ameaçava. Limitava-se a piscar os olhos, a passar a língua pelos lábios, e nós deixávamos cair o braço. Ele sorria:
- Ganhei outra vez.
Voltámos a encontrá-lo muitos anos mais tarde. Foi fácil reconhecê-lo, não obstante a calvície cruel e a pele em tão mau estado que parecia roubada a um morto após rijo combate. Creio que o teríamos reconhecido ainda que entretanto houvesse mudado de raça, de sexo, ou mesmo de clube, porque voltámos a sentir um aperto no estômago, a antiga agonia, assim que espetou em nós o ferrão em brasa dos pequenos olhos piscos.
− Olha quem são eles!
Pousámos as cartas na mesa, um de nós puxou uma cadeira, apertámo-nos um pouco - «unidos caberemos todos», era o nosso lema - e Escuridão sentou-se connosco. Mandámos vir mais cervejas.
− Há quantos anos?
Haviam decorrido décadas. Quisemos saber por onde andara. Desenhou com a mão direita uma vasta curva, abarcando o oceano que dormia aos nossos pés, numa modorra de cachorro velho, e, para além dele, o mundo inteiro e os seus escuros recantos:
− Por aí. Muito por aí. Muitíssimo...
Por onde quer que tivesse andado continuara a vencer. Vestia uma camisa estampada com osgas, calças brancas e sapatos do mais fino couro. Trazia a cabeça protegida por um genuíno panamá, os quais, não obstante o nome, são fabricados à mão no Equador, e vendidos por uma pequena fortuna nas melhores chapelarias de Paris ou Nova Iorque. No pulso esquerdo exibia um pesado relógio de ouro, que sacudiu diante dos nossos olhos assombrados.
− Ah, como tudo mudou. Ainda ontem eu era o candengue pobre. Não tinha dinheiro nem para comprar uma bola de futebol. Lembram-se? Agora sou o dono da bola. Sou o dono da bola, do campo de futebol e dos jogadores.
Quando tentámos saber em que área profissional se movimentava, Escuridão encolheu os ombros, evasivo:
«Negócios, importes e exportes.» Regressara ao país, explicou, movido pelo anseio patriótico de colaborar na grande aventura da reconstrução. Falou sozinho sobre o seu anseio patriótico durante longos minutos. Um de nós ainda se atreveu a recordar os tempos duros que havíamos vivido na trincheira firme do socialismo, comendo peixe-espada com arroz, por alcunha o «cinturão das fapla», ou arroz com arroz, meses a fio, enquanto alguns daqueles que agora regressavam para colher os generosos frutos da paz viajavam pelo mundo com passaportes estrangeiros. Escuridão passou a língua pelos lábios e logo se fez um silêncio aflito.
− Não há pior sofrimento do que o exílio.
Depois pediu que déssemos as cartas, e jogámos o resto da tarde. Vimos o sol desaparecer no mar. A água escurecer e encrespar-se. Perdemos com admirável dignidade. Finalmente Escuridão pousou as cartas:
− É bom voltar a casa - murmurou. Sorriu satisfeito. - Já estava cansado de ganhar sozinho.

José Eduardo Agualusa, «Disse chamar-se Escuridão», in A Educação Sentimental dos Pássaros, Alfragide, Publicalões D. Quixote», 2011, pp. 49- 52