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sábado, 20 de outubro de 2012

696. Guerra

Muitas vezes Sors via-se obrigado a disparar. Fazia-o para um espaço sem nome, perfeitamente incógnito, ligeiramente para cima, de modo a falhar todos os tiros. Não poderia jamais ter a certeza absoluta de não ter matado ninguém, mas acreditava nessa possibilidade. Nas execuções por fuzilamento, havia sempre um dos carrascos que tinha pólvora seca. Para que aqueles que disparavam contra um condenado pudessem acreditar na possibilidade da sua inocência. O nevoeiro e a distância, e o frio, e os gases, também serviam para isso. Eles, quando disparavam, não sabiam se acertavam, se as suas balas eram culpadas. Um soldado poderia sair, isso dizem-nos as probabilidades, de uma guerra sem matar ninguém e sem ter morrido. Isso significa, em termos científicos, que esse soldado é que ganhou a guerra. Não foram os austro-húngaros ou os russos ou os sérvios ou os otomanos ou os romenos ou os alemães ou os belgas ou os franceses ou os portugueses ou outros, mas aquele soldado.
—    Para ganhar uma guerra — disse Sors —, há duas condições: não morrer e não matar. É só nesse caso que se pode sair vitorioso de uma guerra.

Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, pp.73-74.

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