Margarida atingira os seus cinco
anos. Uma idade fácil para as crianças, é aquela idade em que basta mostrar a
mão aberta para dizer há quanto tempo calcorreia este mundo inabitado por Deus.
Margarida mostrava os seus cinco dedinhos com orgulho: já vivera uma mão
inteira, com as falanges, falanginhas e falangetas todas incluídas.
— Que idade tens tu? —
perguntavam-lhe.
E ela mostrava a mão, com a palma
para fora, evidenciando toda a quiromancia que tinha vincada em linhas
sinuosas. O que ela mostrava era um mapa, escrito em linhas de grande
fatalidade.
— O carro do Sol já deu cinco
voltas à minha volta — dizia a pequena Margarida, com o mapa da mãozinha virado
para a assistência.
A idade de uma criança ainda é um
fenómeno mitológico. Fenómeno que se perde com a adolescência. A partir de
certa altura a cronologia passa a ser um número sem qualidades metafísicas. Os
deuses greco-romanos perdem protagonismo e acabam por ser substituídos por leis
físicas, por sebentas aos quadrados e, fatalmente, por um bilhete de
identidade.
E tal como certo e determinado
bom Deus advertiu os seus filhos, Adão e Eva, a não comerem do fruto proibido
pois este traria a morte certa, Celeste advertia a própria filha: o armário da
casa de banho não é para mexer, os frutos que há lá dentro trazem a morte
certa. Margarida ouvia e obedecia a maior parte das vezes, porque para obedecer
é preciso obedecer o tempo todo, já para desobedecer basta um momento, basta uma
vez. Mas a curiosidade era muita: Quem era Deus, como nasceram as girafas que
demoraram milhões de anos a esticar o pescoço, e o que era aquilo dentro do
armário da casa de banho?, interrogava-se a menina. Com cinco anos já era
perfeitamente capaz de questionar pescoços compridos e de subir a um banco, de
abrir o dito armário que continha o fruto proibido. Um dia, a pequena Margarida
fez o mesmo que Eva fez: esticou-se — não precisou de tanto tempo como uma
girafa para chegar às coisas mais altas —, tirou o frasco de barbitúricos
coloridos que cresciam na árvore do Éden e engoliu-os. Para desobedecer basta
uma vez. Para obedecer é que tem de ser o tempo todo. A morte, tal como o bom
Deus sugeriu, foi certa. Margarida tinha perdido os seus cinco anos, o seu
mapa, as suas falanges, falanginhas e falangetas. A morte leva tudo e esta é
especialmente eficaz, esta que se esconde em frutos coloridos (tal como Deus se
esconde numa hóstia), em comprimidos que salvam a vida e são igualmente capazes
de a tirar.
A natureza abomina o vazio, ou
dito numa língua morta: natura abhorret vacuum. Mas que ele existe, existe.
Parece que o Nada, a existir, deixa de ser Nada para ser alguma coisa. A
natureza não gosta de espaços vazios e preenche-os como um burocrata preenche requerimentos.
Não deixa buracos em lado nenhum.
Mesmo os lugares mais rarefeitos, como o espaço sideral e a estupidez humana,
são preenchidos por alguma coisa: luz, metais leves, preconceitos, partículas e
subpartículas dos átomos, radiações, chavões e telenovelas. A natureza enche
chouriços, não há espaço vazio nas suas tripas. Um homem olha à sua volta e não
encontra nada que não esteja já ocupado. Assim pensam os homens com a razão e a
lógica que se passeia nos interstícios dos seus cérebros cinzentos, nessas
dobras confusas que se assemelham a um intestino redondo ou a uma noz. Mas os
homens que pensam com os sentimentos, têm outra lógica a nadar-lhes nas veias e
artérias. Esses acreditam no vazio porque o vêem a toda a hora dentro de si.
O professor Borja e Celeste
passaram a acreditar nesse Nada. O espaço deixado pelo desaparecimento da filha
não fora ocupado pela natureza (essa natureza que abomina o vazio e, no
entanto, é incapaz de preencher o Nada que a morte deixa). Há muita
incompetência na forma como a natureza preenche os espaços, falta-lhe
capacidade para se alojar nos lugares metafísicos. O professor Borja desejaria
poder preencher o seu vazio com radiações, partículas e subpartículas do átomo,
lugares-comuns ou mesmo telenovelas mexicanas, mas nada entra nesse espaço de
dor. O adágio em latim, natura abhorret vacuum, essa frase que diz que a
natureza não gosta nada do vazio, deveria ser outro: natura latinam linguam non
loquitur, ou seja, a natureza não percebe de nada de latim.
Celeste interrogava-se sobre se
Deus teria sofrido tanto quanto ela. Questionava se Deus, depois da
desobediência dos seus filhos, se teria agachado na casa de banho do Céu, seco
pelas lágrimas mais intensas que se pode chorar, e arrancado os cabelos (que
estão todos contados). Ou teria Ele vivido sem culpas, com a justificação do
livre-arbítrio, esse engodo fatal?
Para Celeste haveria alguma
desculpa possível? Ela sentia que não. Deus tinha a Teologia a suportar os seus
erros, o livre-alvedrio conveniente e um advogado como Santo Agostinho, mas ela
só tinha um cônjuge paralelo a si mesmo. Celeste, incapaz de viver com aquela
tragédia que se desenrolava na sua alma, deixou o marido. E fê-lo exactamente
da mesma maneira que Margarida havia usado para deixar os pais, saiu pela mesma
porta que a filha usara: comendo e mastigando os frutos proibidos e coloridos
da casa de banho. O professor Borja encontrou um cadáver nas lajes brancas do
chão, junto à retrete. Uma Celeste morta, morta exactamente da mesma maneira
que Margarida. Utilizaram ambas a mesma porta aberta. A mãe seguia a filha, o
passado seguia o futuro. Era o tempo a andar para trás, desordeiro e marginal.
Celeste derramada nas lajes brancas, com a língua de fora cheia de comprimidos
coloridos, os dentes pequeninos tingidos de azul, laranja, vermelho, verde, uma
Celeste cheia de dor. Junto dela não havia um bilhete sequer, uma nota suicida.
Não havia nada. Havia Nada.
Evidentemente que, dentro do
professor, passaram a habitar dois vazios. Se a natureza tem horror a um vazio,
imagine-se dois a coexistir no mesmo lugar. O vazio tem destas coisas, não
ocupa espaço, por isso no mesmo lugar podem coabitar inúmeros vazios sem que o
peito de um homem se assemelhe a uma praia no Verão.
É conhecido o facto de que a
determinada altura da evolução precisámos de cérebros maiores. Cabeças maiores
eram necessárias para albergar o grande órgão da nossa tragédia e da nossa
glória. Cabeças maiores, maior a dor de parto. Não é fácil parir, nem para quem
nasce nem para quem dá à luz. Cá está a dor de ser cabeçudo, de ter um órgão
para saber e aprender. Cá está a dor do saber, já cravada na infância para
memória futura. A utilização do cérebro é um processo doloroso. Esta hipertrofia da cabeça dá-nos uma grande capacidade para mentir a nós mesmos. E darás à luz com muitas dores, foi-nos dito depois de experimentarmos o fruto do conhecimento, da árvore da ciência do bem e do mal. O professor Borja aprendeu a mentir a si mesmo, voltou a sua cabeça para a Ciência e para o misticismo que a acompanha sempre que o cientista é sério. Enfim, aprendeu a disfarçar os buracos do seu peito com uma camisola fora de moda e umas teorias geométricas, sociopolíticas e históricas.
A vida do professor foi, então, avançando com lentidão, solitária, virada para apenas um lado do telescópio, o espaço sideral, sem perceber que, quando se olha através dele, é ao espelho que nos vemos: não existem buracos negros no espaço sideral, algures a milhares de anos-luz da Terra. Esses buracos negros que vemos ao telescópio são os mesmos que não conseguimos ver dentro de nós.
A vida do professor foi, então, avançando com lentidão, solitária, virada para apenas um lado do telescópio, o espaço sideral, sem perceber que, quando se olha através dele, é ao espelho que nos vemos: não existem buracos negros no espaço sideral, algures a milhares de anos-luz da Terra. Esses buracos negros que vemos ao telescópio são os mesmos que não conseguimos ver dentro de nós.
Afonso Criz, Jesus Cristo bebia Cerveja, pp. 138-140
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