Páginas

quinta-feira, 31 de maio de 2012

561. Retrato de Sarah Affonso

Almada negreiros - Retrato de Sarah Affonso, 1938

560, Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa
Faro, 1924

559. Leitura

Pintura de Ludvik Glazer-Naudé

558. Leitura

Pintura de Fernand Léger

557. Leitura

Pintura de Micah Bloom

domingo, 27 de maio de 2012

553. Pouco tenho para alinhavar.

Thomas C. Fedro, Separation Anxiety
Pouco tenho para alinhavar.
Dizer-te que estou longe
não apaga esta ausência que,
inelutavelmente,
nos distanciou.

Cercam-nos muros de silêncio
opresso.

A própria hera não ousa
na despudorada nudez branca
de paredes que interditam

a fantasia ao forasteiro
voraz.
O gesto tolhido,
o pretexto adiado
a memória a estiolar.

 Eduardo Pitta

terça-feira, 22 de maio de 2012

548. O Sono

Pintura de Arsen Kurbanov


O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim —
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
E o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!...

Álvaro de Campos

domingo, 20 de maio de 2012

546. Surdez

Um homem está preocupado porque pensa que a mulher está a ficar surda, por isso vai ao médico. O médico sugere-lhe que experimente um simples teste em casa: parar atrás dela e fazer-lhe uma pergunta, primeiro a seis metros, depois a três metros e, por fim, mesmo atrás dela.
O homem vai para casa e vê a mulher na cozinha, virada para o fogão. Da porta, pergunta:
- Que vamos jantar esta noite?
Nenhuma resposta.
Três metros atrás dela, repete:
- Que vamos jantar esta noite?
Ilustração de Ingrid Aspock
Continua sem resposta.
Por fim, mesmo atrás dela, pergunta:
- Que vamos jantar esta noite?
A mulher volta-se e diz:
- Pela terceira vez...frango!

Não há dúvida de que este casal tem um sério problema de interpretação de dados dos sentidos.


Thomas Cathcart e Daniel Klein, (2007: 74-75), in Platão e um Ornitorrinco entram num bar...Filosofia com humor

sábado, 19 de maio de 2012

545. Pensar e sentir

A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 17 de maio de 2012

quarta-feira, 16 de maio de 2012

542 Poema


Se o sol se atravessa no caminho de um homem,
a luz pode empurrá-lo para o sonho. Então, fecha
os olhos; espera que as imagens se apaguem
do seu horizonte; e entra no vazio que a treva
lhe oferece. O sol, porém, continua
a brilhar. E ele insiste em manter os olhos
fechados. Anda, com passos hesitantes, num
caminho de luz; as mãos procuram um apoio
na sombra que não encontra. E quando volta
a abrir os olhos, os sonhos continuam à sua
frente, como se fizessem parte do seu destino. 

 Nuno Júdice, A matéria do poema

domingo, 13 de maio de 2012

539. Leitura

A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo escravo.

Antonio Lobo Antunes

sábado, 12 de maio de 2012

quinta-feira, 10 de maio de 2012

535. Pescaria


Um homem
que se preocupava demais
com coisas sem importância
acabou ficando com a cabeça cheia de minhocas.
Um amigo lhe deu então a ideia
de usar as minhocas numa pescaria
para se distrair das preocupações.
O homem se distraiu tanto
pescando
que sua cabeça ficou leve
como um balão
e foi subindo pelo ar
até sumir nas nuvens.

José Paulo Paes

quarta-feira, 9 de maio de 2012

534.Incêndio


Primeiro alinhas as canetas de tinta permanente. Uma com tinta negra, outra com tinta azul. A terceira está vazia.
Sentas-te e debruças-te para o caderno de capa preta. O silêncio arde por toda a casa.         Abres o caderno onde sepultaste, há dias, umas quantas palavras. E ao abri-lo caem as imagens sobre a mesa. O caderno volta a ficar branco - o caderno, a nocturna memória do mundo, a vida. Tudo branco como a morte.
Nenhum corpo cresce, nenhuma sílaba ficou esquecida no papel, nenhum eco do coração.
Sentado, como se estivesses sentado sobre o mar, escutas o lento bater nos confins dos ossos. Mas já nada tremula na luminosidade plúmbea do dia. Nada se acende, ou apaga nos céus.

 O dia afoga-se lentamente, na treva do mar.
Deitas-te, então, ao lado do morto que ainda não és. E dele se liberta um anjo mudo que vem habitar teu corpo.
A vida, como sabes, tem o tempo da areia que se escapa por entre os dedos. Areia rápida e branca. Esvoaçante.
Agora, a ausência - a tua - é um rosto silencioso. E a tua mão está enterrada no tesouro das horas.
Finges dormir para que a dor não deixe rastro no sangue. Nada se move dentro ou fora de ti, excepto o vento no interior dos ossos...
Corpo aéreo, azulínea música rente à claridade da pele.

Páras de escrever. Recostas-te na cadeira e murmuras: da paixão ficou o estremecimento de terra nos teus dentes, e a sombra de um nome rasgando o crepúsculo.
Fechas as pálpebras. O canto ergue-se nítido, sobe ao encontro da boca.
 A teu lado está morto. Inerte e desprotegido - dentro do poema que há-de vir.
Tocas-lhe, como se ainda se escoasse vida no seu sangue. Mas no cimo da penumbrosa montanha inicia-se o degelo. Abres os olhos, pousas a mão no papel, escreves.

Tocar a luz, qualquer luz, não consegue ressuscitar nada. Sílaba a sílaba tudo continua imóvel. Mesmo quando as palavras se agitam e são voláteis, cortam a respiração - ou quando são vegetais e largam um fio de seiva quente na língua.
Porque é do silêncio poroso do anjo mudo, da fala incandescente do seu olhar que, de quando em quando, surge o poema.

A febre desperta o desejo. Uma asa do anjo incendeia-se, desprende-se do corpo - estilhaça-se no éter da paisagem.
A pouco e pouco, acordas. Ouves o assustador rumor das águas e dos astros. O calor sufoca-te.
Continuas a não pressentir o fim do corpo. Anotas: falo da última morte para melhor celebrar a vida.

O dia esvai-se quando, nos céus, se enchem de fogo os olhos vazios da noite.
Vem uma tristeza escura coalhar-se-te nos lábios. Repetes as palavras que ambos conhecemos. A cinza da asa incendiada flutua, por fim, em cima da folha do caderno - e a mão percorre a memória deste corpo. Mancha o papel.

O tempo, longe daqui - onde passam comboios - já se esqueceu. O cansaço devassa-te. Lá fora os cães ladram, onde ainda há mundo.
Mas o mundo foi assaltado. Dele roubaste o que restava de ti. Nenhuma emoção, nenhum sentimento, te pode perturbar.
O mar apagou teus passos. Sabes que é difícil viver sem um rastro. Mas o Poeta não necessita de um biógrafo, ou de um amante, nem de morrer violentamente - para que se perturbe o canto do homem.

O viajante que foste espreita por trás da máscara, sorri, prossegue caminho. Afasta-se com o sangue do anjo nos lábios.

Al Berto, Anjo Mudo

domingo, 6 de maio de 2012

531. Palavras para a Minha Mãe


mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.

José Luís Peixoto, A Casa, a Escuridão

sábado, 5 de maio de 2012

530. Desejos

Desejo a vocês...
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho.
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender uma nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 3 de maio de 2012

528., Conselhos


«Mas Ega entendia que o Sr. Afonso da Maia devia descer à arena, lançar também a palavra do seu saber e da sua experiência. Então o velho riu. O quê! compor prosa, ele, que hesitava para traçar uma carta ao feitor? De resto, o que teria a dizer ao seu país, como fruto da sua experiência, reduzia-se pobremente a três conselhos, em três frases - aos políticos: "menos liberalismo e mais carácter"; aos homens de letras: "menos eloquência e mais ideia"; aos cidadãos em geral: - "menos progresso e mais moral".»

Eça de Queirós, Os Maias

terça-feira, 1 de maio de 2012

526. Tédiopp

Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada.

Fernando Pessoa

525. Maio, maduro maio


Maio maduro Maio
Quem te pintou
Quem te quebrou o encanto
Nunca te amou
Raiava o Sol já no Sul
E uma falua vinha
Lá de Istambul

Sempre depois da sesta
Chamando as flores
Era o dia da festa
Maio de amores
Era o dia de cantar
E uma falua andava
Ao longe a varar

Maio com meu amigo
Quem dera já
Sempre depois do trigo
Se cantará
Qu'importa a fúria do mar
Que a voz não te esmoreça
Vamos lutar

Letra e música de Zeca Afonso
Interpretação: Madredeus