Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.
Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.
Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.
Vitorino Nemésio
Páginas
terça-feira, 25 de dezembro de 2012
domingo, 23 de dezembro de 2012
825. Compras de Natal
São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes
os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes,
atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por
essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e
alegrias. Durável — apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este
mundo.
Cecília Meireles
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
825. Poema de Natal
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinicius de Moraes
824. Um Rosto de Natal
Caiu sobre o país uma cortina de silêncio
a voz distingue o homem mas há homens que
não querem que os demais se elevem sobre os animais
e o que aos outros falta têm eles a mais
no dia de natal eu caminhava
e vi que em certo rosto havia a paz que não havia
era na multidão o rosto da justiça
um rosto que chegava até junto de mim de nicarágua
um rosto que me vinha de qualquer das indochinas
num mundo onde o homem é um lobo para o homem
e o brilho dos olhos o embacia a água
Caminhava no dia de natal
e entre muitos ombros eu pensava em quanto homem morreu por um deus que nasceu
A minha oração fora a leitura do jornal
e por ele soubera que o deus que cria
consentia em seu dia o terramoto de manágua
e que sobre os escombros inda havia
as ornamentações da quadra de natal
Olhava aquele rosto e nesse rosto via
a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados
e os pés gretados de homens humilhados
de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés
ao longo de desertos descampados
Morrera nesse rosto toda uma cidade
talvez pra que às mulheres de ministros e banqueiros
se permita exercitar melhor a caridade
A aparente paz que nesse rosto havia
como que prometia a paz da indochina a paz na alma
Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-se erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei mais uma vez aquele rosto era natal
é certo que o silêncio entristecia
mas não fazia mal pensei pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia
Ruy Belo, Todos os Poemas II. Lisboa: Assírio Alvim, 2004, pág. 1776 e 177 .
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
823. Imortalidade
domingo, 9 de dezembro de 2012
822. Vento
O vento é sempre o mesmo, mas sua resposta é diferente em cada folha. Somente a árvore seca fica imóvel entre borboletas e pássaros
Cecilia Meireles
Cecilia Meireles
821. O Dinheiro não se come
Quando a última árvore tiver caído,
quando o último rio tiver secado,
quando o último peixe for pescado,
vocês vão entender que dinheiro não se come
Greenpeace
quando o último rio tiver secado,
quando o último peixe for pescado,
vocês vão entender que dinheiro não se come
Greenpeace
sábado, 8 de dezembro de 2012
820 Fragmentos
o meu maior desejo
sempre foi
sempre foi
o de aumentar a noite
para a conseguir
encher de sonhos
para a conseguir
encher de sonhos
Virginia Woolf
domingo, 2 de dezembro de 2012
819. Terror de te amar
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.
Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.
Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
domingo, 25 de novembro de 2012
718. O amor, quando se revela,
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
Fernando Pessoa
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
Fernando Pessoa
domingo, 18 de novembro de 2012
717. Ao espelho
Porque insistes, espelho permanente?
Porque duplicas, misterioso irmão,
O menor movimento desta mão?
Porquê o teu reflexo de repente?
És o outro eu de que falou o grego
E espreitas desde sempre. Na lisura
Da água incerta ou do cristal que dura
Procuras-me e é inútil eu estar cego.
O não te ver, mas o saber que existes
Acrescenta-te horror, poder com que ousas
Multiplicar o número das coisas
Que somos e as nossas sinas tristes.
Quando eu morrer, vais copiar um outro
E depois outro, outro, outro, outro...
Jorge Luís Borges
O menor movimento desta mão?
Porquê o teu reflexo de repente?
És o outro eu de que falou o grego
E espreitas desde sempre. Na lisura
Da água incerta ou do cristal que dura
Procuras-me e é inútil eu estar cego.
O não te ver, mas o saber que existes
Acrescenta-te horror, poder com que ousas
Multiplicar o número das coisas
Que somos e as nossas sinas tristes.
Quando eu morrer, vais copiar um outro
E depois outro, outro, outro, outro...
Jorge Luís Borges
sábado, 17 de novembro de 2012
716. Há mais de meia hora
Há mais de meia hora
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo.)
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo Um volume da «Enciclopédia Britânica».
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.
Quem pudesse sintonizar tudo isto!
3-1-1935
Álvaro de Campos
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo.)
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo Um volume da «Enciclopédia Britânica».
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.
Quem pudesse sintonizar tudo isto!
3-1-1935
Álvaro de Campos
714.As vezes tenho ideias felizes,
As vezes tenho ideias felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...
18-12-1934
Álvaro de Campos
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...
18-12-1934
Álvaro de Campos
sábado, 10 de novembro de 2012
712. Fome
a hunger artist, by Kathleen Telesco |
«Não é a pornografia que é obscena, é a fome que é obscena.»
José Saramago
José Saramago
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
710. «Ensinar é um exercício de imortalidade.
domingo, 4 de novembro de 2012
709. Contei meus anos e descobri
Contei meus anos e descobri
Que terei menos tempo para viver do que já tive até agora….
Tenho muito mais passado do que futuro…
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de jabuticabas…
As primeiras, ele chupou displicentemente...
Mas, percebendo que faltam poucas, rói o caroço…
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades…
Inquieto-me com os invejosos tentando destruir quem eles admiram.
Cobiçando seus lugares, talento e sorte…..
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas
As pessoas não debatem conteúdo, apenas rótulos…
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos…
Quero a essência…. Minha alma tem pressa….
Sem muitas jabuticabas na bacia
Quero viver ao lado de gente humana…muito humana…
Que não foge de sua mortalidade.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade….
Rubem Alves.
Que terei menos tempo para viver do que já tive até agora….
Tenho muito mais passado do que futuro…
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de jabuticabas…
As primeiras, ele chupou displicentemente...
Mas, percebendo que faltam poucas, rói o caroço…
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades…
Inquieto-me com os invejosos tentando destruir quem eles admiram.
Cobiçando seus lugares, talento e sorte…..
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas
As pessoas não debatem conteúdo, apenas rótulos…
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos…
Quero a essência…. Minha alma tem pressa….
Sem muitas jabuticabas na bacia
Quero viver ao lado de gente humana…muito humana…
Que não foge de sua mortalidade.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade….
Rubem Alves.
708. O tempo passa? Não passa
Foto: Relogio Florido - Jardim Inglês em Genebra (suiça) |
O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.
O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.
Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.
O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.
São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.
E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.
Carlos Drummond de Andrade, iAmar se Aprende Amando
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.
O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.
Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.
O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.
São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.
E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.
Carlos Drummond de Andrade, iAmar se Aprende Amando
707, Para um amigo tenho sempre um relógio
Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
António Ramos Rosa, Viagem Através de uma Nebulosa
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
António Ramos Rosa, Viagem Através de uma Nebulosa
704.Chuva e Sol
Pintura de Justyna Kopania |
Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.
Alberto Caeiro, Poemas Incomjuntos
Ambos existem; cada um como é.
Alberto Caeiro, Poemas Incomjuntos
sábado, 3 de novembro de 2012
sábado, 27 de outubro de 2012
701. [Num outro lugar]
«E a vida lateja, longe,
num outro lugar.»
Luísa Dacosta, Chamamento / Cem Poemas Portugueses no Feminino.
num outro lugar.»
Luísa Dacosta, Chamamento / Cem Poemas Portugueses no Feminino.
domingo, 21 de outubro de 2012
700. E conta-me histórias
699. Sofro, Lídia, do medo do destino.
Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.
Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar
Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.
Ricardo Reis, Odes
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.
Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar
Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.
Ricardo Reis, Odes
sábado, 20 de outubro de 2012
698. Liberdade
Durante uns dias Sors ficou num belíssimo hospital psiquiátrico. A liberdade era tão grande que sentiu umas melhoras nos olhos. Sors podia andar nu, insultar quem quisesse, gritar, enfim, tinha descoberto a verdadeira liberdade. Sem convenções sociais, sem limites, sem diplomacia. Sors estava encantado, mas ao fim de dois dias de experiências já havia pouco para fazer e já não se sentia livre. É esse, aliás, o problema da liberdade: se é muita, tudo pode ser tudo, não há limites para nada, não há obstáculos, e o aborrecimento instala-se. Sors, nessa altura, pensou na importância das fronteiras. Fazem com que não percamos a nossa identidade. A liberdade é o maior inimigo da identidade e uma pessoa tem de arranjar um equilíbrio entre ambas.
Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, p. 114
697. Violência
Não há arte nenhuma capaz de convocar tantas almas quanto a violência.
Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, p.1.
696. Guerra
Muitas vezes Sors via-se obrigado a disparar. Fazia-o para um
espaço sem nome, perfeitamente incógnito, ligeiramente para cima, de
modo a falhar todos os tiros. Não poderia jamais ter a certeza absoluta
de não ter matado ninguém, mas acreditava nessa possibilidade. Nas
execuções por fuzilamento, havia sempre um dos carrascos que tinha
pólvora seca. Para que aqueles que disparavam contra um condenado
pudessem acreditar na possibilidade da sua inocência. O nevoeiro e a
distância, e o frio, e os gases, também serviam para isso. Eles, quando
disparavam, não sabiam se acertavam, se as suas balas eram culpadas. Um
soldado poderia sair, isso dizem-nos as probabilidades, de uma guerra
sem matar ninguém e sem ter morrido. Isso significa, em termos
científicos, que esse soldado é que ganhou a guerra. Não foram os
austro-húngaros ou os russos ou os sérvios ou os otomanos ou os romenos
ou os alemães ou os belgas ou os franceses ou os portugueses ou outros,
mas aquele soldado.
— Para ganhar uma guerra — disse Sors —, há duas condições: não morrer e não matar. É só nesse caso que se pode sair vitorioso de uma guerra.
— Para ganhar uma guerra — disse Sors —, há duas condições: não morrer e não matar. É só nesse caso que se pode sair vitorioso de uma guerra.
Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, pp.73-74.
695. Nenhum império sobrevive à emoção
— Nenhum império sobrevive à emoção. Criam-se fronteiras, mas são artifícios, linhas inventadas que podem impedir a livre circulação de bens e pessoas, mas não impedem que as emoções as rompam.
Sors, encostado à ombreira da porta da biblioteca, perguntou-lhe onde lera isso.
— Em jornal nenhum — respondeu Wilhelm. — Para compreender o império, devemos olhar para um homem qualquer que passe na rua. E veremos que, por mais racional, por mais fronteiras que ele coloque para agir corretamente, mais tarde ou mais cedo sucumbirá à emoção. Se um homem tiver fome, o seu estômago tomará o poder. Nenhuma cabeça, nenhuma ordem será capaz de contrariar a barriga vazia. O império vai ruir.
Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, p.63.
sexta-feira, 19 de outubro de 2012
693. Há muitos tipos de comida
— Há muitos tipos de comida — disse o coronel Mõller enquanto abanava o filho. — Um homem possui três estômagos: um na barriga, outro no peito e outro na cabeça. O da barriga, toda a gente sabe para que serve; o do peito mastiga a respiração, que é a nossa comida mais urgente. Uma pessoa morre sem ar muito mais depressa do que sem água e pão. E por fim há o estômago da cabeça, que se alimenta de palavras e de letras. Os primeiros dois estômagos do homem alimentam-se através da boca e do nariz, ao passo que o terceiro estômago se alimenta principalmente através dos olhos e dos ouvidos, apesar de usar tudo o resto de um modo mais subtil.
Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-Louças, Alfragide, Caminho, 2011, p.20
692. Agora É
Agora é diferente
Tenho o teu nome o teu cheiro
A minha roupa de repente
ficou com o teu cheiro
Agora estamos misturados
No meio de nós já não cabe o amor
Já não arranjamos
lugar para o amor
Já não arranjamos vagar
para o amor agora
isto vai devagar
isto agora demora
Manuel António Pina, Poesia Reunida
Tenho o teu nome o teu cheiro
A minha roupa de repente
ficou com o teu cheiro
Agora estamos misturados
No meio de nós já não cabe o amor
Já não arranjamos
lugar para o amor
Já não arranjamos vagar
para o amor agora
isto vai devagar
isto agora demora
Manuel António Pina, Poesia Reunida
quarta-feira, 17 de outubro de 2012
690. Fernando pessoa - Nota Biográfica de 30 de março de 1935
Cópia do original dactiloscrito por Fernando Pessoa |
“Nome completo: Fernando
António Nogueira Pessoa.
“Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888.
“Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888.
“Filiação: Filho legítimo de Joaquim de
Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general
Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D.
Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira,
jurisconsulto e que foi Director-Geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena
Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto de fidalgos e judeus.
“Estado: Solteiro.
“Profissão: A designação mais própria será
«tradutor», a mais exacta a de «correspondente estrangeiro em casas
comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.
“Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dt.º,
Lisboa. (Endereço postal - Caixa Postal 147, Lisboa).
“Funções
sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos públicos, ou funções
de destaque, nenhumas.
“Obras que
tem publicado: A obra
está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações
ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte:
«35 Sonnets» (em inglês), 1918; «English Poems I-II» e «English Poems III» (em
inglês também), 1922, e o livro «Mensagem», 1934, premiado pelo Secretariado de
Propaganda Nacional, na categoria «Poema». O folheto «O Interregno», publicado
em 1928, e constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser
considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar
muito.
“Educação: Em virtude de, falecido seu pai em
1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o Comandante João
Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o
prémio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança
em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.
“Ideologia
Política: Considera
que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente
imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente
inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria,
embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é,
liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.
“Posição
religiosa: Cristão
gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e
sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão
implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a
Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da
Maçonaria.
“Posição
iniciática: Iniciado,
por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da
(aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.
“Posição
patriótica: Partidário
de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração
católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a
substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez
espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade;
nada contra a Nação».
“Posição
social:
Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.
“Resumo de
estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos
Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos – a
Ignorância, o Fanatismo e a Tirania”.
Lisboa, 30
de Março de 1935
domingo, 14 de outubro de 2012
689. Agressão
A sua testa tem a marca de uma agressão com um jarro de vidro, mas é por dentro que os jarros de vidro magoam mais, e os estalos nas orelhas, e os murros, e os pontapés. Dão cabo do interior das pessoas como uma doença. Batem por fora, mas começam a afundar-se e a entranhar-se dentro das veias, nos pensamentos, nos intestinos, nos pulmões, no fígado. Crescem com as unhas e com os cabelos e com os ossos. Uma pessoa fica com metástases das agressões por todo o lado, com a alma escurecida apesar da luz fluorescente da cozinha, essa luz que nos deixa com cara de doentes.
Afonso Cruz, «Quando as joaninhas de plástico deixam de falar»» in Afonso Cruz et allii, Isto não é um conto, Lisboa, Associação Link, 2012, p. 86..
688. Violência
Claro que o seu amor-próprio já tinha sido praticamente aniquilado por ele, porque, quando passas a vida a ouvir que não prestas, começas a acreditar nisso, e quando tudo o que recebes são humilhações, começas a pensar que as mereces. A repetição é a mais subtil das armas psicológicas. Toda esta dinâmica faz com que o medo se instale, comodamente, e nos habite dia após dia. Mês após mês. Ano após ano.
Karla Suáresz, «Esse Estranho Animal»» in Afonso Cruz et allii, Isto não é um conto, Lisboa, Associação Link, 2012, p.73.
terça-feira, 9 de outubro de 2012
domingo, 7 de outubro de 2012
684. Não digas nada!
Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.
Fernando Pessoa
(23-8-1934)
683. Minha pátria é a língua Portuguesa
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim
corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a
sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer
mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria
ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de
Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas
as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que
estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia
sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa
movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que
o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem
querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas,
criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa
fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e
indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias,
as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas
esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que
me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda
criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o
rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo,
confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me
fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento
hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas
palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro
vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como
uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro.
Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da
emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela
grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido,
um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me
pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem
pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não
quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em
ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a
sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o
escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e
ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto
régio, pelo qual é senhora e rainha.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares
682. (O tradutor cleptómano)
por Dezsö
Kosztolányi
Décimo quarto capítulo de Esti Kornél, no qual se desvendam as misteriosas artimanhas de Gallus, tradutor erudito mas errante.
Falávamos de escritores e poetas, de velhos amigos,
que tinham começado por fazer caminho connosco, mas depois ficaram para trás e
desapareceram. De vez em quando lançávamos um nome para o ar. Quem é que ainda
se lembra dele? Assentíamos e um sorriso vago iluminava-nos os lábios. No
espelho dos nossos olhares reflectia-se um rosto tido por esquecido, uma
carreira, uma vida perdidas. Quem sabe alguma coisa dele? Ainda estará vivo? A
resposta era o silêncio. Nesse silêncio, os louros secos da glória restolhavam
como as folhas caídas num cemitério. Permanecíamos em silêncio.
Durante um desses silêncios, de vários minutos,
alguém citou o nome de Gallus.
— Coitado — disse Esti Kornél. — Vi-o ainda há uns
anos, talvez sete ou oito anos, em tristes circunstâncias. Por essa altura
sucedeu-lhe uma história por causa de um conto policial, que por si só é um
conto policial, o mais emocionante e doloroso que já vivi.
Mas vocês conheciam-no, pelo menos um pouco. Um
rapaz talentoso, brilhante e intuitivo, e além disso consciencioso e culto.
Falava várias línguas. Sabia tão bem inglês que ao que se diz dava lições de
inglês ao Príncipe de Gales. Viveu lá fora, em Cambridge, durante quatro anos.
No entanto, tinha um defeito fatal. Não, não era a
bebida. Mas palmava tudo o que lhe vinha às mãos. Roubava que nem uma pega.
Tanto lhe fazia se era um relógio de bolso, uma pantufa ou uma gigantesca
chaminé de fogão. Não se importava nem com o valor das coisas roubadas, nem com
o volume ou tamanho delas. O seu prazer era apenas fazer aquilo que queria:
roubar. Nós, os amigos mais chegados, tentávamos dar-lhe a volta. Com carinho,
pregávamos-lhe sermões. Ralhávamos-lhe e fazíamos-lhe ameaças. E ele até nos
dava razão. Prometia lutar contra a sua própria natureza. Mas a razão lutava em
vão, a natureza era mais forte. Recaía sempre.
Inúmeras vezes se viu repreendido e humilhado em
público por estranhos, mais de uma vez apanhado em flagrante. Nessas alturas
tínhamos de nos esforçar para remediar de um modo ou outro as consequências dos
seus actos. No entanto, uma vez no expresso de Viena palmou a carteira de um
comerciante moravo que o apanhou ali mesmo, e o entregou à gendarmaria na
estação seguinte. Trouxeram-no algemado para Budapeste.
Tentámos salvá-lo novamente. Vocês que escrevem,
sabem que tudo depende das palavras, tanto a excelência de um poema, como o
destino de um homem. Argumentámos que era cleptómano, e não ladrão.
Se é nosso conhecido, geralmente é cleptómano. Se
desconhecido, é ladrão. O tribunal não o conhecia, pelo que foi considerado
ladrão e condenado a dois anos de prisão.
Depois de ser posto em liberdade, numa manhã escura
de Dezembro, perto do Natal, apareceu-me à porta esfomeado e esfarrapado. Caiu
de joelhos à minha frente. Implorou-me que não o abandonasse, que o ajudasse,
que lhe arranjasse trabalho. Não podia, por enquanto, escrever sob o próprio
nome. Mas não sabia fazer outra coisa, senão escrever. Fui então falar com um
editor decente e humano, recomendei-o, e no dia seguinte a editora encarregou-o
da tradução de um conto policial inglês. Para nós era pouco mais que lixo,
envergonhava-nos sujar as mãos com tal coisa. Não líamos. No máximo
traduzíamos, mas só de luvas. Ainda me lembro do título: O Misterioso Castelo
do Conde Vicislav. Mas que importava isso?
Eu estava contente por poder ter feito alguma
coisa, e ele também estava contente por poder ganhar o seu pão. Atacou o
trabalho com entusiasmo. Trabalhou com tal afinco que entregou o manuscrito
passadas três semanas, antes do prazo estipulado.
Fiquei tremendamente admirado quando, dias depois,
a editora me informou por telefone que a tradução do meu protegido era
inutilizável e que não iria pagar um tostão por ela. Não compreendi. Apanhei um
coche e segui para lá.
O editor entregou-me o manuscrito sem uma palavra.
O nosso amigo tinha-o passado a limpo à máquina, numerado as páginas, e até as
tinha atado com um cordão com as cores nacionais. Isso era típico dele, acho que
já tinha dito que em termos profissionais ele era de confiança, de um rigor
escrupuloso. Comecei a ler o texto. Exclamei de encanto. Frases claras,
expressões perspicazes, subtis engenhos linguísticos sucediam-se uns aos
outros, tantos que aquela literatura de pacotilha talvez nem os merecesse.
Surpreendido, perguntei ao editor o que tinha a objectar. Sempre sem uma
palavra, entregou-me então o original inglês, pedindo-me para comparar os dois
textos. Estive durante meia hora a analisá-los, olhando ora para o livro, ora
para o manuscrito. Por fim, levantei-me estupefacto. Disse ao editor que tinha
toda a razão.
Porquê? Não tentem adivinhar. Estão enganados. Não,
não era a tradução de outro romance. Tratava-se mesmo da tradução fluente,
artística, por vezes com arrojos poéticos d'O Misterioso Castelo do Conde
Vicislav. Estão outra vez enganados. Não, não tinha um único erro de tradução.
Realmente dominava tão bem o inglês como o húngaro. Parem. Nunca ouviram nada
que se pareça. O "gato" era outro. Outro mesmo.
Eu também só comecei a perceber gradualmente, pouco
a pouco. Oiçam. A primeira frase do original inglês era: 'Todas as trinta e
seis janelas do velho e escalavrado castelo estavam iluminadas. Em cima, no
primeiro andar, no salão de baile, brilhavam quatro luxuosos lustres de
cristal...' Na tradução húngara estava: 'Todas as doze janelas do velho e
escalavrado castelo estavam iluminadas. Em cima, no primeiro andar, brilhavam
dois luxuosos lustres de cristal...' Arregalei os olhos, e continuei a ler. Na
terceira página, o escritor inglês dizia: 'Com um sorriso irónico, o conde
Vicislav esvaziou a carteira bem recheada, e atirou-lhes o montante exigido,
mil e quinhentas libras...'
A versão do tradutor húngaro era: 'Com um sorriso
irónico, o conde Vicislav esvaziou a carteira, e atirou-lhes o montante
exigido, cento e cinquenta libras...' Comecei a sentir uma suspeita de mau
augúrio, que infelizmente em poucos minutos se transformou numa triste certeza.
Mais abaixo, no fim da terceira página, a edição inglesa dizia: 'A condessa
Eleonor estava sentada a um canto do salão de baile, vestida de gala, usando as
antigas jóias de família: ostentava na cabeça a tiara de diamantes que herdara
da sua tetravô, esposa de um príncipe-elei-tor alemão; no colo de alabastro brilhava
um colar de pérolas opalino, e os seus dedos estavam quase hirtos com anéis de
brilhantes, safiras e esmeraldas...' Para minha grande surpresa, o manuscrito
húngaro reconstruiu essa descrição colorida da seguinte maneira: 'A condessa
Eleonor estava sentada a um canto do salão de baile, vestida de gala...' Mais
nada. Faltavam a tiara de diamantes, o colar de pérolas, os anéis de
brilhantes, as safiras e as esmeraldas.
Estão a perceber o que tinha feito este nosso
desgraçado colega, bem digno de melhor sorte? Pura e simplesmente roubara as
jóias de família da condessa Eleonor, com a mesma imperdoável ligeireza
aliviara também o conde Vicislav, aliás tão simpático, deixan-do-lhe apenas
cento e cinquenta das mil e quinhentas libras, de igual forma fanara dois dos
quatro lustres de cristal do salão de baile, e desviara ainda vinte e quatro
das trinta e seis janelas do velho e escalavrado castelo. Sentia o mundo a
girar à minha volta. O meu espanto atingiu o auge quando cheguei à conclusão,
sem margem para dúvidas, de que o mesmo marcava de forma consistente e fatal
todo o seu trabalho. Por onde passasse, a caneta do tradutor lesava as
personagens que tinha acabado de conhecer, não poupando nem móveis, nem
imóveis, violando a quase incontestavelmente sagrada propriedade privada.
Trabalhava usando diferentes técnicas. Na maior
parte das vezes, os objectos de valor evaporavam-se sem deixar rasto. Dos
tapetes, dos cofres e das pratas, destinados a elevar o nível literário do
original inglês, não restavam nem vestígios no texto húngaro. Outras vezes
surripiava só uma parte, metade ou dois terços. Se alguém mandava o criado
levar cinco malas para a carruagem de comboio, ele mencionava apenas duas, e
sonegava insidiosamente as restantes três. De qualquer forma, para mim o mais
desolador — talvez por demonstrar verdadeira perfídia e desonestidade — era o
facto de ele com frequência substituir os metais nobres e as pedras preciosas
por materiais reles e sem valor, a platina por lata, o ouro por cobre e o
diamante por cristal ou vidro.
Despedi-me da editora cabisbaixo. Por curiosidade
pedi para ficar com o manuscrito e o original inglês. Intrigava-me o verdadeiro
mistério deste policial, por isso em casa continuei a investigação e fiz o
inventário dos objectos roubados. Trabalhei sem descanso da uma da tarde até às
seis e meia de manhã. No fim, apurei que o transviado do nosso colega, ao longo
da tradução, se tinha apropriado indevidamente e ilegalmente de 1 579 251
libras esterlinas, 177 anéis de ouro, 947 colares de pérolas, 181 relógios de
bolso, 309 pares de brincos, 435 malas de viagem, sem contar com as
propriedades, florestas e pastos, palácios ducais e baroniais, tal como
pequenos objectos insignificantes, lenços, palitos e campainhas, que seria
longo, e talvez inútil, enumerar.
Onde é que ele metia os móveis e imóveis que afinal
só existiam no papel, no mundo da imaginação, e qual o objectivo do furto,
seria uma questão que nos levaria longe e que por isso não vou aprofundar. Mas
tudo isto me convenceu de que ele continuava escravo do seu vício delinquente
ou da sua doença, que não havia esperanças de cura, e que não merecia o apoio
da sociedade respeitável. Eu, na minha indignação moral, desisti dele.
Abandonei-o ao seu destino. Nunca mais ouvi falar dele.
(1932)
Ficçõesde humor. Revista de contos, Lisboa,Tinta Permanente, [2003],pp. 121-129.Tradução de Agnes Jancsó C. Lopes)
sábado, 6 de outubro de 2012
680. Homenagem a Ricardo Reis
Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.
Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.
Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.
Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética III
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.
Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.
Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.
Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética III
678. Confissões de um humorista
por O. Henry
Houve um estádio indolor de incubação que
durou vinte e cinco anos, e depois tive um surto e as pessoas disseram que eu
era o supra-sumo.
Mas chamaram-lhe humor em vez de sarampo.
Os empregados do armazém compraram um tinteiro
de prata para o sócio mais velho quando fez cinquenta anos. Apinhámo-nos no
gabinete dele para lho dar. Tinham-me escolhido para porta-voz e fiz um pequeno
discurso que andava a preparar há uma semana.
Foi um sucesso. Era todo cheio de trocadilhos
e epigramas e reviravoltas engraçadas que fizeram vir abaixo a casa, de si
bastante sólida, na linha da venda de ferragens por atacado. O Marlowe
propriamente dito chegou a sorrir e os empregados aproveitaram a deixa e riram
à gargalhada.
A minha reputação como humorista data das nove
e meia dessa manhã. Os meus colegas passaram semanas a avivar a chama do meu
amor-próprio. Um a um vieram dizer-me que o meu discurso fora incrivelmente bem
feito, meu caro, e explicaram-me com todo o cuidado cada uma das minhas piadas.
A pouco e pouco percebi que se esperava que eu
continuasse. Outros podiam bem falar, cheios de bom senso, de negócios e dos
tópicos do dia, mas de mim exigia-se uma coisa brincalhona e airosa.
Esperava-se que eu dissesse piadas sobre
cerâmica e aligeirasse os granitos com graçolas. Era o segundo contabilista, e
se não apresentasse um balancete com uma coisa cómica ao pé das somas ou não
encontrasse motivo de riso na factura duns arados, era uma decepção para os
outros empregados. Gradualmente, a minha fama espalhou-se, e tornei-me numa
personagem castiça. A nossa cidade era suficientemente pequena para que isto
fosse possível. O jornal diário citava-me. Eu era indispensável nas reuniões
sociais.
Acredito que tivesse uma graça razoável e
alguma facilidade na resposta rápida e espontânea. É um dom que cultivei e
aperfeiçoei pela prática. E a natureza deste dom era bondosa e cordial, não ia
para o sarcasmo nem ofendia os outros. As pessoas começavam a sorrir quando me
viam aparecer, e quando chegávamos perto, já eu trazia pronta a palavra que
alargava num riso o sorriso delas.
Casara cedo. Tínhamos um menino de três anos
que era um encanto e uma menina de cinco. Como é natural, vivíamos numa casinha
coberta de vinha e éramos felizes. O meu ordenado como contabilista no negócio
das ferragens mantinha à distância os males que derivam da riqueza supérflua.
Escrevera várias vezes piadas e peças de humor
que considerei especialmente felizes e enviara-as a certos jornais que publicam
essas coisas. Todas foram imediatamente aceites. Houve chefes de redacção que
escreveram a pedir mais colaboração.
Um dia recebi uma carta do editor de um famoso
semanário. Sugeria que eu lhe mandasse um artigo humorístico para encher uma
coluna que vagara, insinuando que passaria a contribuição regular caso o
trabalho fosse satisfatório. Assim fiz, e ao fim de duas semanas ofereceu-me um
contrato de um ano, por uma quantia bastante superior à que me pagavam na empresa
de ferragens.
Fiquei deliciado. A minha mulher já me
coroara, na cabeça dela, com o louro imperecível do êxito literário. Nessa
noite, ao jantar, comemos rissóis de lagosta e bebemos uma garrafa de vinho de
amora. Era a oportunidade de me libertar da servidão. Tive com Louisa uma
conversa longa e séria. Concordámos que eu devia deixar o meu lugar no armazém,
e dedicar-me ao humor. Demiti-me. Os meus colegas ofereceram-me um banquete de
despedida. O discurso que ali fiz foi coruscante. Veio publicado na íntegra na
Gazeta. Na manhã seguinte acordei e olhei para o relógio.
— Já é tarde, raios! — exclamei, e
precipitei-me para apanhar a roupa. Louisa lembrou-me de que eu já não era um
escravo das ferragens e dos fornecimentos aos construtores civis. Agora era
humorista profissional.
Depois do pequeno-almoço levou-me toda
orgulhosa ao quartinho ao pé da cozinha. Tão querida! Lá estavam a minha mesa e
cadeira, bloco de notas, tinta e a bandeja do cachimbo. E todos os sinais
exteriores do autor — o aipo com rosas acabadas de apanhar e madressilva, o
calendário do ano passado na parede, o dicionário e um saquinho cheio de
chocolates para ir petiscando nos intervalos da inspiração. Tão querida!
Sentei-me para trabalhar. O papel de parede
tem uns arabescos, ou umas odaliscas ou — talvez — uns trapézios. Fixei os
olhos numa das figuras. Pus-me a pensar em humor.
Sobressaltou-me uma voz — a de Louisa.
— Se já não tens muito que fazer, querido — dizia
vem almoçar.
Olhei para o relógio. Sim, cinco horas
ceifadas pela gadanha sinistra. Fui almoçar.
— Não podes trabalhar tanto logo de início — disse
Louisa. — Goethe, ou terá sido Napoleão?, disse que chegavam cinco horas por
dia de esforço mental. Porque não me levas a mim e aos meninos a passear ao
bosque hoje à tarde?
— Estou um bocado cansado — admiti. E fomos ao
bosque.
Mas cedo lhe apanhei o jeito. Passado um mês
já eu fornecia texto com a mesma regularidade dos carregamentos de ferragens.
E tive sucesso. A minha coluna no semanário
teve algum impacto, e na conversa de café entre críticos, referiam-se-me como
uma lufada de ar fresco nas hostes dos humoristas. Aumentei bastante os
rendimentos contribuindo para outras publicações.
Aprendi os truques do ofício. Conseguia pegar
numa ideia engraçada, fazer uma piada de duas linhas, e ganhar um dólar.
Punha-lhe umas suíças postiças, servia-a fria como quadra, duplicando-lhe o
valor na produção. Virava-a do avesso e juntando-lhe um cheirinho de rima quase
nem a reconheciam como vers de sociétê
calçado de novo e com uma ilustração de moda.
Comecei a poupar dinheiro e comprámos tapetes
novos e um órgão de sala. Os meus conterrâneos começaram a olhar-me como
cidadão de alguma importância em vez do pateta alegre que eu fora enquanto
trabalhava nas ferragens.
Passados cinco ou seis meses, a espontaneidade
desapareceu do meu humor. Repentes e tiradas droláticas já não me saíam todas
despreocupadas pela boca fora. Por vezes, faltava-me o assunto. Dei comigo à
coca a ver se apanhava ideias disponíveis nas conversas dos amigos. Às vezes
roía o lápis e ficava pasmado a olhar para o papel de parede horas a fio,
tentando construir uma alegre bolhinha de graça espontânea.
E depois tornei-me numa harpia, um Moloch, um
Jonas, um vampiro, para os meus conhecidos. Ansioso, desvairado, ávido, eu era,
no meio deles, um autêntico desmancha-prazeres. Era só cair-lhes da boca um
dito inteligente, uma comparação espirituosa, uma frase mordaz e eu saltava como
um cão a apanhar um osso. Não ousava confiar na memória; mas virando-me um
pouco de lado, culpado e mesquinho, tomava notas no meu sempre presente bloco
de apontamentos ou no punho da camisa, para usar mais tarde.
Os amigos olhavam-me com pena e pasmo. Não era
o mesmo homem. Onde outrora lhes fornecera entretenimento e alegria, agora
caía-lhes em cima como ave de rapina. De mim já não levavam gracinhas só pelos
sorrisos deles. Eram demasiado preciosas. Não me podia dar ao luxo de oferecer
gratuitamente os meios da minha subsistência. Era uma raposa lúgubre louvando o
canto dos meus amigos corvos para que deixassem cair dos bicos os pedaços de
humor que eu cobiçava.
Quase toda a gente me evitava. Cheguei a
esquecer-me de como era fazer um sorriso, e nem isso pagava pelos ditos de que
me apropriava. Gente, lugares, momentos, temas, nada estava isento da minha
pilhagem de material. Até na igreja, a minha fantasia amoral corria à caça,
pelas coxias solenes e pelos pilares, em busca do saque.
Se o pastor falava na doxologia, eu começava
logo: "Doxologia-Socodologia-Socodólogo-Metro-Meter-o".
O sermão passava-me pela peneira mental, e os
preceitos morais escorriam despercebidos, se eu vislumbrasse a vaga
possibilidade de um trocadilho ou de um bon mot. Os hinos mais solenes do coro
eram mero acompanhamento dos pensamentos em que concebia novas maneiras de
glosar velhas piadas sobre a rivalidade entre a soprano, o tenor e o baixo.
A minha própria casa passou a ser terreno de
caça. A minha mulher é uma criatura muitíssimo feminina, cândida, simpática e
impulsiva. No passado, deliciava-me conversar com ela e as suas ideias eram
fonte de prazer constante. Agora explorava-a. Era uma mina de ouro dessas
contradições engraçadas e amorosas que distinguem a mente feminina.
Comecei a fazer negócio com as pérolas de
in-sabedoria e humor que deviam ter enriquecido apenas o sagrado recinto do
lar. Com manha diabólica, encorajava-a a falar. Sem desconfiar, ela punha o
coração nas mãos. Na fria, conspícua, baixa letra impressa, eu oferecia-o ao
olhar público.
Qual Judas literário, beijava-a e traía-a. Por
moedas de prata vestia-lhe as doces confidências com a roupa de baixo e os
folhinhos da patetice e fazia-as dançar na praça.
Querida Louisa! Houve noites em que me
debrucei sobre ela, cruel como um lobo sobre o tenro cordeiro, atento até às
palavras murmuradas no sono, esperando apanhar uma ideia para a lavra esforçada
do dia seguinte. Mas o pior está para vir.
Valha-me Deus! A seguir, enterrei fundo as
presas nos ditos fugidios dos meus pequeninos.
Guy e Viola eram duas fontes brilhantes de
pensamentos e ditos infantis e insólitos. Havia procura deste género de humor e
eu fornecia regularmente uma secção duma revista com "Divertidas Fantasias
da Infância". Punha-me a espreitá-los, como um índio espia um antílope.
Escondia-me atrás dos sofás e das portas, ou gatinhava pelos arbustos no pátio
e punha-me a escuta enquanto eles brincavam. Tinha todas as qualidades da
harpia, excepto o remorso.
Uma vez, quando estava sem ideias nenhumas e
tinha de enviar o texto pelo correio seguinte, cobri-me de folhas caídas no
jardim, onde sabia que vinham brincar. Não posso acreditar que o Guy soubesse
do meu esconderijo, mas mesmo que soubesse, detestaria ter de o censurar por
deitar fogo às folhas, causando a destruição do meu fato novo, e quase cremando
um progenitor.
Cedo os meus próprios filhos começaram a fugir
de mim como da peste. Muitas vezes, quando me chegava a eles pé ante pé qual
melancólico ladrão de sepulturas, ouvia-os a dizer um para o outro:
— Lá vem o pai — e apanhavam os brinquedos e
iam a correr esconder-se num lugar mais seguro. Desgraçado miserável que eu
era!
E, no entanto, estava bem, financeiramente. No
primeiro ano poupara mil dólares e tínhamos vivido com conforto. Mas a que
preço! Não tenho bem a certeza do que seja um pária, mas eu era tudo o que essa
palavra parece indicar. Não tinha amigos, nem gozava a vida. Sacrificara a
felicidade da minha família. Era uma abelha, sugando mel sórdido das mais belas
flores da vida, temido e ostracizado por causa do meu ferrão.
Um dia, um homem falou comigo, com um sorriso
amável e simpático. Há meses que tal não me acontecia. Passava eu no
estabelecimento funerário de Peter Heffelbower. Peter estava à porta e
cumprimentou-me. Parei, com o coração estranhamente apertado pelo cumprimento
dele. Convidou-me a entrar.
O dia estava frio e chuvoso. Fomos para a sala
das traseiras, onde havia um pequeno fogão aceso. Veio um cliente e o Peter
deixou-me sozinho um bocado. De repente, senti-me tomado de um sentimento novo —
uma calma maravilhosa, uma satisfação, e olhei em volta. Havia filas de caixões
de roseira brilhantes, panos mortuários, tripeças, plumas de essa, flâmulas
negras, e toda a parafernália do solene ofício. Aqui havia paz, ordem,
silêncio, era o lugar próprio das reflexões graves e dignas. Aqui, à beira da
vida, havia um nichozinho dominado pelo espírito do eterno descanso.
Quando entrei, as loucuras do mundo abandonaram-me
à porta. Não senti qualquer inclinação para me esforçar por uma ideia
humorística sobre tal aparato sombrio e solene. O meu espírito parecia
distender-se para o grato repouso num divã recamado de pensamentos delicados.
Há um quarto de hora, eu era um humorista
abandonado. Agora, era um filósofo, cheio de serenidade e à-vontade. Encontrara
onde me refugiar do humor, da ardente perseguição do tímido motejo, da caça
degradante à piada arquejante, da inquieta busca da resposta pronta.
Não conhecia bem Heffelbower. Quando ele
voltou, deixei-o falar, temendo que ele pudesse ser uma nota dissonante na doce
harmonia de hino fúnebre do seu estabelecimento.
Mas não. Estava em harmonia. Dei um longo
suspiro de felicidade. Nunca encontrara conversa de homem mais magnificamente
maçadora do que a do Peter. Comparada com ela, o mar Morto é um gaiser. Nunca
centelha ou vislumbre de graça lhe prejudicavam as palavras. Lugares-comuns,
banais e abundantes como as amoras, fluíam-lhe dos lábios, causando tanta
agitação como as notícias da semana passada. Um pouco trémulo, experimentei
nele um dos meus ditos mais afiados. Caiu ali mesmo, sem efeito, a ponta
quebrada. Passei a adorar o homem.
Duas ou três noites por semana ia
discretamente ter com o Heffelbower e divertia-me à grande na sala das
traseiras. Era a minha única alegria. Comecei a acordar cedo e a trabalhar
rapidamente, para poder passar mais tempo no meu porto de abrigo. Era só ali
que podia largar o hábito de extrair ideias humorísticas de tudo o que me
rodeava. A conversa de Peter não me deixava uma única aberta, tivesse eu
tentado.
Sob tal influência, o meu estado de espírito
melhorou. Era a folga do trabalho, de que todo o homem precisa. Surpreendi um
ou dois dos meus antigos amigos com um sorriso e uma frase alegre ao passar por
eles na rua. E por vezes fiz pasmar a família quando consegui relaxar o
suficiente para fazer uma observação jocosa na presença deles.
Estivera tanto tempo obcecado pelo incubo do
humor que agarrava as minhas horas de folga com o brio de um rapazinho da
escola.
O trabalho começou a ressentir-se. Já não era
o sofrimento e o fardo que antes fora. Muitas vezes assobiava à mesa de
trabalho, e escrevia com muito mais fluência. Acabava as tarefas com
impaciência tão ansioso por chegar ao salutar refúgio, como um bêbedo a
taberna.
A minha mulher passou horas angustiada especulando
sobre onde é que eu passaria as tardes
Achei melhor não lhe dizer; as mulheres não compreendem
estas coisas. Coitada! Ainda apanhou um susto.
Um dia trouxe para casa uma pega de prata de
um caixao para pesa-papéis e uma pluma muito bonita e macia tirada duma essa
para limpar o pó aos meus papéis.
Gostava de as ver na secretária, e pensar na
adorada sala do Heffelbower. Mas Louisa encontrou-as e gritou de horror. Tive
de a consolar com uma desculpa tosca mas vi nos olhos dela que o preconceito
não desaparecera' E tive de tirar dali os objectos, e muito rapidamente
Um dia, Peter Heffelbower pôs-me à frente uma
tentaçao que me fez tresvairar. Naquele seu modo sensato e monótono, mostrou-me
os livros e explicou que os lucros e o negócio cresciam rapidamente. Pensava
arranjar um sócio com algum dinheiro. Preferia-me a mim, de toda a gente que
conhecia. Quando saí de casa dele nessa tarde, já o Peter tinha o cheque dos
mil dólares que eu tinha no banco, e eu era sócio dele no negócio dos enterros.
Fui para casa num sentimento de alegria
delirante, e uma certa dose de dúvida. Tinha pavor de contar à minha mulher.
Mas ia nas nuvens. Desistir da escrita de peças humorísticas, morder mais uma
vez a polpa da vida, em vez de a espremer por umas gotitas de amargo sumo, para
divertir o público — que bênção!
À mesa do jantar, Louisa deu-me umas cartas
que tinham chegado na minha ausência. Algumas continham manuscritos rejeitados.
Desde que começara a ir a casa do Heffelbower que os meus textos vinham
devolvidos com frequência alarmante. Nos últimos tempos, despachava piadas e
artigos com grande fluência. Antes disso, trabalhara como quem assenta tijolo,
devagar e com sofrimento.
Abri logo uma carta do editor do semanário com
que tinha contrato. Ainda dependíamos em grande medida dos cheques desse artigo
semanal. A carta era assim:
Exmo.
Senhor
Como sabe,
o nosso contrato anual expira este mês. Embora lamentando a necessidade de o
fazer, temos a dizer que não queremos renovar o contrato para o próximo ano.
Estávamos muito satisfeitos com o seu estilo de humor, que parece ter deliciado
uma grande quantidade de leitores.
Mas nos
últimos dois meses observámos uma nítida queda na sua qualidade. Os seus
primeiros trabalhos demonstravam uma corrente espontânea, fácil e natural de
humor e de graça. Ultimamente, ele é trabalhado, artificial epouco convincente,
prova dolorosa de trabalho árduo e repetitivo.
Lamentando
mais uma vez não poder continuar a aceitar as suas contribuições, somos
sinceramente
O Editor
Entreguei a carta à minha mulher. Leu-a e
ficou com uma cara tristíssima e de lágrimas nos olhos.
— Malvado do velho! — disse, indignada. — As
tuas peças são tão boas como eram. E não te levam nem metade do tempo a fazer.
Depois, acho eu, Louisa deve ter pensado nos
cheques que iam acabar.
— Oh, John — gemeu ela o que é que vais fazer?
Em resposta, levantei-me e pus-me a dançar a polka à roda da mesa. Louisa deve
ter pensado que a preocupação me enlouquecera; e as crianças devem ter tido
esperança de que assim fosse, porque se lançaram atrás de mim exultantes,
imitando os meus passos. Agora já me parecia mais com o companheiro de
brincadeira que antes fora.
— Hoje vamos todos ao teatro! — gritei. — Nada
menos. E ceamos tarde, como loucos, e portamo-nos mal no restaurante Palace.
Olari-lari-lolela!
E depois expliquei a minha alegria dizendo que
era sócio de uma próspera agência funerária e que os artigos humorísticos
podiam bem ir enfiar a cabeça em sacos de serapilheira ou enterrar-se nas
cinzas, a ver se eu me ralava. Com a carta do editor na mão para justificar o
que eu fizera, a minha mulher não pôde avançar com nenhuma objecção, fora
algumas, mas brandas, e baseadas na incapacidade feminina para apreciar uma
coisa tão boa como a sala das traseiras de Peter Hef-não, de Heffelbower &
Cia, Agência Funerária.
Em conclusão, direi que hoje não encontram
nesta cidade homem mais amado, jovial, cheio de ditos espirituosos, do que eu.
As minhas piadas são novamente faladas e citadas; voltei a ter prazer nas
confidências da minha mulher sem um pensamento mercenário, enquanto Guy e Viola
brincam a meus pés, espalhando pérolas de humor infantil sem medo do homem
medonho que as atormentava e perseguia como um cão, de bloco de notas em punho.
O negócio floresceu muito. Faço a
contabilidade e tomo conta da agência, enquanto Peter trata das coisas no
exterior. Diz que a minha ligeireza e bom humor haviam de tornar qualquer
funeral num verdadeiro pandemônio.
O. Henry, «Confissões de um Humorista» in Ficçõesde humor. Revista de contos, Lisboa,Tinta
Permanente, [2003], pp. 37-41. (Tradução de Luísa Costa Gomes)
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