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quinta-feira, 28 de junho de 2012

612. A Ribeira do Anjo

Numa madrugada de Inverno, após uma noite de chuva grossa, uma gota de água amanheceu a deslizar entre duas pedras. A seguir veio outra e outra. Quando a manhã começou a ganhar mais Luz, um fiozinho de água deslizava já, teimoso e à surrelfa, por entre as ervas. Encalhou entre três grandes calhaus e por ali foi ficando até se transformar numa poça brilhante e funda. Passados dois dias, caiu do céu uma negra trovoada e, quando as nuvens sossegaram, a fonte engrossou subitamente e a água jorrou lá do alto, do seu leito de ervas e pedras na direcção do vale. Brincou, indecisa, por entre velhas raízes e folhas secas, até que se acomodou entre os pedregulhos que há muito tinham rolado do alto da montanha. E por ali ficou, escorregando aqui, saltando acolá, atravessando campos cobertos de geada e ramadas nuas. E, brincando sempre, foi encontrando o seu caminho na direcção do grande rio. Tinha nascido uma ribeira. Sempre que chovia, o seu leito engrossava e corria, agora, cada vez mais poderoso e mais fundo.
Quando chegou a Primavera, as suas margens cobriram-se de fetos e de violetas selvagens. Pequenos choupos e ulmeiros despontaram vigorosamente da terra. Chegaram libelinhas e borboletas enquanto minúsculas trutas cintilavam em grandes acrobacias para vencer a corrente. Por fim, veio um moleiro e construiu um moinho nas suas margens para que a força da água moesse os grãos de milho e de centeio.
Vivia contente, a ribeirinha. Toda ela vibrava de exaltação. Tinha prazer em ouvir a sua própria voz cantando por entre as pedras e gostava de sentir o seu corpo engrossar com a água que caía do céu nos dias cinzentos. Os rebanhos vinham de longe para beber e colónias de agriões minúsculos tinham despontado ao longo das suas margens. As crianças das aldeias mais próximas vinham, em bando, colhê-los e dançavam na água até que o Sol se pusesse.
Com o passar dos anos o moinho deixou de transformar os grãos em farinha e o moleiro vendeu-o a um homem. Era um gigante louro e barbudo que passou a viver lá, completamente só. Era duro morar lá dentro no Inverno, porque as margens da ribeira cresciam e inundavam o chão, que era de terra batida. As pessoas da aldeia mais próxima achavam estranho uma pessoa morar ali tão sozinha e tão pobremente. Mas apesar disso e de não saberem de onde viera nem como viera, gostavam dele. Ajudava toda a gente: fazia longos carreiros entre as ervas para que a água do ribeiro se encaminhasse para os campos, guardava os rebanhos que pastavam nas suas terras, ajudava os camponeses por altura das colheitas. Plantava árvores. Passava a vida a plantar árvores. Havia quem jurasse que o vira acariciar as folhinhas que nasciam na Primavera e, por isso, muita gente da aldeia cuidava que era maluco. Falava muito pouco mas, de vez em quando, chegavam pessoas estranhas à aldeia, só para estar com ele. Encaminhavam-se pelo carreiro que ia dar ao moinho e quando voltavam, traziam nos olhos uma expressão pacífica e feliz.
A única coisa certa que as pessoas da aldeia sabiam do homem era que ele tinha um grande amor pela ribeira. Passava a maior parte do seu tempo de pés na água, limpando as suas margens, reparando os estragos que o Inverno fizera na corrente, organizando as pedras do seu leito para que a água melhor se acomodasse ou para que a sua música melhor se ouvisse. Por isso também havia gente que jurava que falavam os dois, ele e a água.
Mas um dia as águas da ribeira perderam a sua luminosa transparência. Primeiro ganharam um tom ligeiramente rosado. Depois, aos poucos, foram escurecendo e acabaram por ficar de um tom avermelhado, cor de sangue. As libelinhas e as borboletas desapareceram e centenas de pequenas trutas apareceram mortas, a boiar à tona da água. Os milhos e as couves estiolaram e morreram. As águas pareciam também mortas, já nem cantavam entre as pedras. Apenas espumavam. Os camponeses arrepelaram-se de aflição e começaram a dizer que a ribeira estava endemoninhada. E foram, em procissão, ter com o homem do moinho.
A partir daí o homem do moinho deixou de dormir. Passava dia e noite percorrendo o leito da ribeira, perscrutando as águas, limpando-as da espuma, ansioso e atento às suas mais pequenas transformações. Mas as águas continuavam a correr, lentas e viscosas. Quando o homem saía do ribeiro e punha os pés na terra, trazia-os tão vermelhos como a própria água. Até que uma noite a corrente tornou-se de repente mais agitada, mais barulhenta.
—    Querem acabar comigo... — borbulhava a ribeira.
O homem, ao princípio, não percebeu que a ribeira falava. Na realidade era uma invenção da aldeia aquela história de ele conversar com ela. Aflito, apenas observava a corrente e lhe doíam os seus gemidos, perdidos na noite muito escura.
—    Tu aí! — repetiu a ribeira. — Eu sei que tens pena de mim...
Mas o homem não percebia. Queria muito perceber, mas não percebia.
—    Eu sei que tens pena de mim... — insistia a água.
O homem ficou muito aflito. Finalmente, parecia-lhe que a água murmurava qualquer coisa.
Então passou toda a noite a tentar decifrar a fala da ribeira. Acariciava e limpava as poucas plantas aquáticas que ainda sobreviviam, punha pedrinha daqui, tirava de acolá, escavava a areia do fundo, aconchegava a água. E escutava.
—    Querem matar-me... — soluçava a ribeira. — Querem acabar comigo... — tornava a soluçar a ribeira.
E ninguém soube nunca como aconteceu. Durante muitos dias e muitas noites ainda, o homem do moinho esteve fielmente atento à ribeira. E à força de escutar, talvez tivesse, finalmente, compreendido os seus gemidos. Porque, uma manhã, já no fim do Verão, os camponeses viram chegar, nos antigos regos, crestados pelo ardor do veneno, a mesma água cristalina de antigamente. Alegres, ajoelharam-se na terra, beijaram a água, deram de beber aos seus campos secos. A seguir correram para as margens da ribeira que serpenteava entre as pedras, transparente e pura, com o vigor e a força de antigamente. Levantaram as mãos para o céu. E, ao fim do dia, foram todos ao moinho agradecer ao homem. Mas o moinho estava fechado, o homem tinha desaparecido sem deixar rasto.
É desde essa época que lhe chamam Ribeira do Anjo. Porque, quem conta hoje esta história, nunca se esquece de afirmar que o dono do moinho era um anjo e o seu corpo se fundiu com a água para produzirtão grande milagre. Há até quem lá veja, ainda hoje, umas grandes asas brancas voejando com a névoa nos dias de muito frio. Também há quem pense que era um santo. Ou um espírito das águas. E que a ribeira, vigiada lá de cima, estará para sempre a salvo de todos os males. Porque ainda hoje a sua água continua, cristalina e saltitante, fazendo música por entre as pedras.
Também há quem diga que foi apenas coincidência: que o homem desgostoso e cansado da sua solidão, partiu dali para nunca mais voltar. E que um dia virá em que outra fábrica se instalará nas suas margens e vomitará as suas sujas entranhas para o leito da ribeira.

Teresa Savedra, Contos que o vento soprou, Porto, Civilização Editora, s.d.,pp.29-32

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