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sábado, 15 de outubro de 2011

4. Uma Pessoa Quase Normal

por José Eduardo Agualusa


O senhor Mesquita tinha a certeza de que à noite se transformava num tubarão-martelo. Tirando tal convicção, que a família acatava com serena bonomia, o senhor Mesquita passava por ser uma pessoa quase normal. É verdade que acordava asfixiado todas as manhãs, e que levava alguns segundos até conseguir adaptar-se ao novo ambiente. A seguir barbeava-se, vestia-se, lia o jornal enquanto bebia café e trincava torradas, e quando saía de casa, a pé, em direção ao emprego, a uns duzentos metros, se tanto, na esquina mais próxima, já era inteiramente um homem.
Um homem comum.
Até ao dia em que no caminho para o emprego um toxicodependente lhe encostou uma navalha vermelha, de ponta e mola, ao estômago, e o senhor Mesquita lhe devorou o braço direito, incluindo a navalha.
A vida de Júlio Baltazar mudou por completo na manhã em que perdeu o braço direito e uma navalha.
Até àquele dia, Júlio Baltazar nunca tivera objetivos na vida. Apaixonara-se aos dezasseis anos por uma colega, Joana, rapariga bonita e inteligente, porém um tanto alheada, que ocupava a maior parte do tempo a comunicar com as plantas através da ingestão de cogumelos alucinógenos, ou da inalação do fumo de folhas de diferentes variedades de cânhamo. Júlio Baltazar nunca conseguiu comunicar com as plantas. Um dia Joana partiu para a índia, seguindo as indicações de um repolho, e Júlio abandonou a agricultura biológica e as saudáveis caminhadas pelos bosques à procura de cogumelos. Passou então a consumir substâncias químicas nada recomendáveis. Não demorou a desistir dos estudos, iniciando uma incerta carreira como arrumador de automóveis. Para arredondar o salário comprou uma bela navalha vermelha, de ponta e mola, passando a exibi-la, na rua, a pessoas desacompanhadas. O senhor Mesquita foi a quinta pessoa a quem Júlio Baltazar mostrou a navalha e a primeira que a comeu. No hospital, atordoado, incapaz de compreender exatamente o que lhe acontecera, o arrumador de automóveis jurou abandonar para sempre os exercícios químicos. Voltou a estudar, formando-se em psicologia clínica. Uma tarde surgiu-lhe no consultório um homem de perfil afiado, inclinado para diante, como se o puxasse o futuro. Sentou-se e disse ao que vinha:
- Sou um tubarão!
O doutor Júlio Baltazar estremeceu. Recordou-se da manhã em que perdera o braço direito. Talvez aquela figura tivesse irrompido de algum recanto em ruínas do seu cérebro, resultado do tempo em que abusara das drogas - uma maldita alucinação retroativa. Ou não. Ali, no consultório, surgiam-lhe todas as semanas as mais curiosas personagens. Conhecera um sujeito que se sentia sexualmente atraído por piscinas. Outro por volkswagens. Um terceiro tomava chá, todas as tardes, no cemitério, com a mãe defunta. Havia os que se julgavam capazes de comunicar com o diabo, e muitos (muitos, mesmo) que haviam sido raptados por extraterrestres e, depois de soltos, se mantinham em contacto com eles. Respirou fundo:
− Que género de tubarão?
O homem inclinou-se ainda mais para diante:
− Sphyrna lewisi - soprou. - O senhor conhece?
Sorriu, e Júlio Baltazar viu-lhe os dentes. Era demasiado tarde para sentir medo. O psicólogo compreendeu, num relâmpago, que se preparara para aquilo metade da vida. Abriu devagar a gaveta esquerda da secretária e tirou a pistola.

José Eduardo Agualusa, «Disse chamar-se Escuridão», in A Educação Sentimental dos Pássaros, Alfragide, Publicações D. Quixote», 2011, pp. 55-57.

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