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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

1. Disse chamar-se Escuridão

por José Eduardo Agualusa


Disse chamar-se Welema, nome que em umbundo significa Escuridão. Nenhum de nós o contestou. Ninguém se riu. Faltou-nos coragem. O rapaz tinha um jeito desagradável de lamber os lábios, e uns pequenos olhos piscos e pérfidos que sustentavam com dificuldade o fulgor da tarde. Perguntou se podia jogar connosco, e, embora não houvesse lugar para ele, dissemos-lhe que sim e um de nós abandonou o campo e foi sentar-se na areia, à sombra esparsa e verde de um coqueiro.
Escuridão não podia ser considerado um bom jogador, pelo contrário, tirando a rapidez. Ficávamos a vê-lo passar como um clarão, a áspera cabeleira da cor do capim seco e a pele luminescente, que dali a dez anos estaria já semeada de sinais e manchas noturnas, como a casca de uma banana demasiado madura. Naquela época, porém, Escuridão tinha apenas onze anos, como todos nós, e a pele - insisto - brilhava à luz do sol, límpida e lisa, semelhante à dos anjos loiros nos manuais da catequese.
Ainda aplaudimos os quatro primeiros golos. Ao quinto, porém, erguemos o sobrolho, sentados à sombra verde do coqueiro, e soltámos um sonoro muxoxo de desprezo: «Afinal!»
Não mais do que isso. Ninguém se atreveu a questionar os golos. Alguma coisa nele nos amedrontava, embora não soubéssemos precisar o quê. Sim, depois discutimos isso. Discutimos durante anos. No fundo dos olhos piscos morava uma aranha na sua teia. Ou então seria aquele jeito desagradável que ele tinha de passar a língua pelos lábios, «tipo cobra», como lembrou um de nós. Ou ainda a voz demasiado aguda, como um giz riscando a ardósia. O rapaz foi aparecendo nas tardes de sábado, e ganhava sempre, fosse qual fosse o jogo, futebol, berlinde, corrida de bicicleta, dominó ou braço-de-ferro.
Escuridão não discutia, não ameaçava. Limitava-se a piscar os olhos, a passar a língua pelos lábios, e nós deixávamos cair o braço. Ele sorria:
- Ganhei outra vez.
Voltámos a encontrá-lo muitos anos mais tarde. Foi fácil reconhecê-lo, não obstante a calvície cruel e a pele em tão mau estado que parecia roubada a um morto após rijo combate. Creio que o teríamos reconhecido ainda que entretanto houvesse mudado de raça, de sexo, ou mesmo de clube, porque voltámos a sentir um aperto no estômago, a antiga agonia, assim que espetou em nós o ferrão em brasa dos pequenos olhos piscos.
− Olha quem são eles!
Pousámos as cartas na mesa, um de nós puxou uma cadeira, apertámo-nos um pouco - «unidos caberemos todos», era o nosso lema - e Escuridão sentou-se connosco. Mandámos vir mais cervejas.
− Há quantos anos?
Haviam decorrido décadas. Quisemos saber por onde andara. Desenhou com a mão direita uma vasta curva, abarcando o oceano que dormia aos nossos pés, numa modorra de cachorro velho, e, para além dele, o mundo inteiro e os seus escuros recantos:
− Por aí. Muito por aí. Muitíssimo...
Por onde quer que tivesse andado continuara a vencer. Vestia uma camisa estampada com osgas, calças brancas e sapatos do mais fino couro. Trazia a cabeça protegida por um genuíno panamá, os quais, não obstante o nome, são fabricados à mão no Equador, e vendidos por uma pequena fortuna nas melhores chapelarias de Paris ou Nova Iorque. No pulso esquerdo exibia um pesado relógio de ouro, que sacudiu diante dos nossos olhos assombrados.
− Ah, como tudo mudou. Ainda ontem eu era o candengue pobre. Não tinha dinheiro nem para comprar uma bola de futebol. Lembram-se? Agora sou o dono da bola. Sou o dono da bola, do campo de futebol e dos jogadores.
Quando tentámos saber em que área profissional se movimentava, Escuridão encolheu os ombros, evasivo:
«Negócios, importes e exportes.» Regressara ao país, explicou, movido pelo anseio patriótico de colaborar na grande aventura da reconstrução. Falou sozinho sobre o seu anseio patriótico durante longos minutos. Um de nós ainda se atreveu a recordar os tempos duros que havíamos vivido na trincheira firme do socialismo, comendo peixe-espada com arroz, por alcunha o «cinturão das fapla», ou arroz com arroz, meses a fio, enquanto alguns daqueles que agora regressavam para colher os generosos frutos da paz viajavam pelo mundo com passaportes estrangeiros. Escuridão passou a língua pelos lábios e logo se fez um silêncio aflito.
− Não há pior sofrimento do que o exílio.
Depois pediu que déssemos as cartas, e jogámos o resto da tarde. Vimos o sol desaparecer no mar. A água escurecer e encrespar-se. Perdemos com admirável dignidade. Finalmente Escuridão pousou as cartas:
− É bom voltar a casa - murmurou. Sorriu satisfeito. - Já estava cansado de ganhar sozinho.

José Eduardo Agualusa, «Disse chamar-se Escuridão», in A Educação Sentimental dos Pássaros, Alfragide, Publicalões D. Quixote», 2011, pp. 49- 52

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