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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

22. O Astronauta e o Homem dos Descobrimentos

por Rómulo de Carvalho

Tem-se chamado à conquista espacial a maior aventura do homem. Sem pretender percutir a corda patriótica quer-me parecer que a maior aventura do homem continua a ser a dos Descobrimentos. Se fosse possível pôr as duas situações a par, e dar a escolher a um homem consciente delas, ou entrar na caravela para navegar no oceano encapelado e desconhecido, ou entrar no foguetão para dar tantas voltas à Terra e regressar, o natural seria desejar ser posto em órbita. O homem que navega no espaço continua em íntimo contacto com o planeta de que se afastou, comunica com ele, fala com os que cá ficaram, ouve e responde, recebe ordens, diz gracejos em prosa ou em verso e tem a certeza de que a probabilidade de sofrer um desastre é extremamente pequena porque vai amparado com todo o poderoso saber da Técnica e sabe que todos têm os olhos ou o pensamento nele para o socorrerem, se for preciso. Esses não estão sós, nem perdidos, nem aflitos. Estão a executar uma missão de alta relevância, em que o mínimo depende deles próprios e o máximo dos que estão ausentes mas a observá-los.
Que diferença para os navegadores dos Descobrimentos! Esses, saíam do Restelo e enquanto vissem a orla da praia estavam ligados ao mundo; mas, desaparecida ela, eram homens totalmente perdidos de quem ninguém mais sabia, nem os outros deles nem eles dos outros. Cada um dos que ficavam ia à sua vida pelas ruelas da cidade mourejando o seu pão, e eles, os navegadores, tanto podiam ir para o fundo das águas, como arribarem nas ilhas verdes e serem cortados às postas, como tornarem-se reis dos indígenas, que ninguém sabia de nada. Era o abandono total. Era a fome, a sede, o escorbuto, a agonia, a revolta, a traição, a morte lenta e raivosa, sem remissão possível, o bambolear enjoativo e incansável do madeiro sobre as águas. Passavam-se meses, um ano, dois anos. As vezes sucedia voltarem e então vinham contar o que tinham passado. Tinham passado a maior aventura de todos os tempos, e, além disso, vinham sabendo que havia no mundo homens de outras cores, organizados segundo outras formas de sociedade, em que a moral era diferente, os valores humanos outros, os deuses outros, e que a Terra era redonda e que girava em torno do Sol como qualquer outro insignificante planeta. Sentavam-se na praia a pensar nisso e tinham nos olhos o brilho de um homem novo.

Rómulo de Carvalho, «O Astronauta e o Homem dos Descobrimentos», O Comércio do Porto

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