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quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

282. Segredo

por Maria Tereza Horta




Segredo

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

***

25 de Abril, poesia e "O Segredo"

por Luísa Costa Hölzl

Quando ligamos o 25 de Abril à poesia logo vêm à baila os poemas musicados de Zeca Afonso. Eles não foram só prenúncio de grandes mudanças, como, com "Grândola, Vila Morena", sinal concreto para a saída da Revolução. E depois, nos meses que se seguiram, esses poemas animaram multidões em festa e, na óptica de hoje, talvez mesmo em transe.

Agora, em 2009, para festejar os 35 anos do 25 de Abril, quero lembrar aqui uma outra poesia, não tão estrondosa, não tão popular como Os vampiros ("eles comem tudo, eles comem tudo") ou o Menino do Bairro Negro, mas, à sua maneira, um marco na escrita feminina do tempo da "outra senhora" que, não por acaso, era época de senhores e só deles.

Maria Teresa Horta, nascida em 1937 e fazendo parte do grupo "Poesia 61" publicou em 1972 o livro de poemas "Minha Senhora de Mim", demonstrando logo no título insubordinação à ideologia vigente de Deus, Pátria e Família. Quem assim se dizia senhora de si rebelava contra quem nela queria mandar, assumia ela o poder, no seu modo de pensar e de reflectir, na vida social e política, na escrita e no amor. O poema que escolhi chama-se "Segredo" e vai-nos revelar, ao arrepio do título, toda uma programática de escrita e vida que, para a censura de então, justificava a apreensão destes poemas, o que de facto aconteceu. E se o livro não andava nas bancas, talvez passasse de mão em mão, tomasse o seu caminho nos meios literários e intelectuais e, muito subtilmente, ia mudando mentalidades e comportamentos.

Nestas cinco estrofes, quatro de três versos cada a emoldurarem uma sextilha, há um eu claramente feminino, pois fala logo ao princípio "do meu / vestido / que tiro pela cabeça". Como leitores assistimos a uma cena que parece preparar um encontro amoroso. Mas não um encontro amoroso que ao longo dos séculos os poetas-homens haviam descrito - o enamoramento, a paixão platónica, o serviço à senhora distante - antes um encontro bem concreto de dois amantes e a vivência do amor físico. O eu feminino é que aqui age: despe a roupa, corre as cortinas para criar intimidade, envolve o pescoço do amante com as suas pernas e usa ambos os corpos ("sombra do meu poço", "novelo" e "roca de fiar" são imagens bem plásticas para os órgãos sexuais) procurando e dando prazer: "a fim de te ouvir gritar". Extraordinário aqui é o facto de se instituir um eu feminino que não só age com autonomia como dá ordens a um tu: "não contes" e "deixa que". O eu pede ou melhor, ordena que o tu guarde segredo e nesta fala revela o que de facto está a fazer. Essa cortina que ela corre afinal não vai calar o que se passa atrás dela. A mulher age e, ao pedir ao amante que não conte nada, assume ela a voz que, sem rodeios, conta e canta o amor erótico. Não só ela parece tomar a iniciativa no espaço íntimo da vivência amorosa, como - e isso ainda me surge mais revelador - se torna ela a dona da escrita. E, se algumas dezenas de anos antes, Florbela Espanca havia exprimido o desejo veemente: "Eu quero amar, amar perdidamente", aqui a voz além de transformar a passividade secular feminina em actividade, descreve esta sem pejo. E o tu masculino terá de calar a sua experiência porque agora é ela que fala! A "sombra espessa" do espaço e "a sombra do meu poço" são afinal expostas às claras, numa revelação subtil a querer contrariar o próprio título do poema: o segredo deixa de o ser. Subvertidas aparecem palavras como cortinados, anel, novelo ou roca de fiar, todas elas numa acepção concreta referindo-se ao lugar destinado à mulher desde sempre: os cortinados que resguardavam "a casa portuguesa", o anel que selava o casamento sobre o qual se alicerçava a sociedade de então, novelo e roca representavam o trabalho caseiro e os lavores femininos, sinais visíveis da dona de casa exemplar. Estes sinais sofrem aqui uma transformação transgressora, para a época no mínimo escandalosa, pois invertem valores instituídos e não questionados, que, aplicados numa conotação erótica e sexual, contestam não só a ideologia vigente como toda a sociedade.
Sociedade que irá levar com o 25 de Abril de 1974 uma reviravolta a todos os níveis: na moral, nos comportamentos, nos afectos, nas artes. Por isso subsiste neste pequeno poema de 1972 uma chama revolucionária que quer iluminar o corpo feminino e o corpo do texto: ambos se vão libertar de grilhões seculares e arrogar-se voz e presença. Neste sentido, este poema e muitos outros de Maria Teresa Horta assim como muitos textos de outras vozes femininas de então, fizeram, ao transgredirem e subverterem a ordem moral do Portugal de então, fizeram, repito, também eles (os textos!) e ELAS (as escritoras!) o 25 de Abril.

Fonte: Nova Cultura (acedido em 5-01-2012)

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