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quarta-feira, 11 de abril de 2012

475. Homossexuais contestatários

À minha frente, no elevador, está um rapaz dos seus 16 ou 17 anos. Pelo modo como coloca os pés no chão, cruza as mãos uma sobre a outra e inclina ligeiramente a cabeça, percebo que é gay.
Estamos no edifício da FNAC do Chiado. Trabalho naquela zona e, pelo menos duas vezes por dia, subo e desço a Rua Garrett. Frequentemente, por comodidade, utilizo o elevador da FNAC: é uma forma prática de ir da Baixa para o Chiado e vice-versa.
Em todas as grandes cidades do mundo há lugares preferidos pelas comunidades gay. Não sei as razões que conduzem a essas escolhas, mas muitos guias turísticos já as referem. O Chiado é, em Lisboa, uma dessas zonas – e, de facto, cruzamo-nos aí constantemente com ‘casais’ de mulheres e sobretudo ‘casais’ de homens de todas as idades.
Julgo ser um facto notório que a comunidade gay está a crescer. Há quem afirme que não é assim – e o que se passa é que os gays têm cada vez menos receio de se assumirem, cada vez menos receio de revelarem as suas inclinações, tendo orgulho (e não vergonha) de serem como são.
Talvez esta explicação seja parcialmente verdadeira.
Mas, se for assim, é natural que o número de gays esteja mesmo a crescer. O assumir da homossexualidade por parte de figuras públicas acabará forçosamente por ter um efeito multiplicador, pois funciona como propaganda.
Até há duas gerações a homossexualidade era reprimida socialmente, pelo que muitos jovens com inclinações homossexuais teriam pejo de se assumir – acabando alguns por constituir família para afastar eventuais suspeitas. Conheço vários exemplos desses: casos de homens e mulheres que se casaram, vindo mais tarde a trocar o parceiro ou a parceira por uma pessoa do mesmo sexo.
Ora hoje passa-se o contrário: alguns jovens que não têm inclinações evidentes acabam por ser atraídos pelo mistério que ainda rodeia a homossexualidade e pelo fenómeno de moda que ela assumiu em determinados sectores. Não duvido de que há gays que nascem gays. Mas também há gays que se tornam gays – por influência de amigos, por pressão do meio em que se movem (no ambiente da moda isso é claro), e por outra razão que explicarei adiante e me levou a escrever este artigo.
Ao olhar esse jovem que ia à minha frente no elevador, pensei: será que há 20 anos ou 30 anos ele teria a mesma atitude, assumiria tão ostensivamente a sua inclinação? E, indo mais longe, se ele tivesse sido jovem nessa altura seria gay?
Tive dúvidas. Ao observar aquele rapaz tive a percepção clara de que a sua forma de estar, assumindo tão evidentemente a homossexualidade, correspondia a uma atitude de revolta.
Durante séculos, os filhos seguiram submissamente as orientações dos pais em matéria de profissão e casamento. Às vezes contrariados, mas seguiam. Havia famílias de diplomatas, de advogados, de arquitectos, de empresários, de comerciantes, de carpinteiros, de padeiros, de trabalhadores rurais.
Mas nos anos 60 dá-se na sociedade ocidental uma revolução que mudaria o mundo. É a geração dos Beatles, de Woodstock, do Maio de 68, da droga, do sexo livre e da contestação à guerra do Vietname – ‘Make love, not war’ –, da contestação em geral.
O termo ‘contestatário’ entrou na linguagem comum. As palavras ‘irreverente’, ‘insubmisso’, ‘rebelde’, etc. deixaram de ter uma conotação negativa e passaram a ser vistas como elogios. E não se tratava apenas de um fenómeno europeu. Uns anos antes, do lado de lá do Atlântico, filmes como Rebel Without a Cause (Fúria de Viver), de Nicholas Ray, faziam furor – e James Dean, o protagonista, tornava-se o ícone de uma geração ‘rebelde’ sem uma ‘causa’ bem definida.
Nessa época, um jovem que não fosse contestatário não estava bem dentro do seu tempo.
Pertenci a essa geração em que muitos jovens da minha idade estavam em guerra aberta com a família. Eu tinha amigos revolucionários, que andavam a pintar paredes com frases contra Salazar e a guerra colonial, ou em reuniões clandestinas contra a ditadura, cujos pais tinham lugares de confiança no regime salazarista.
Houve conflitos tremendos entre pais e filhos. Os pais, funcionários exemplares, presidentes de Câmara, directores-gerais, militares de elevada patente, etc., sofriam horrores com a irreverência dos filhos que andavam em manifestações, entravam em conflito com a Polícia e às vezes eram presos.
Em 1969, era o meu tio José Hermano Saraiva ministro da Educação Nacional, eu estava envolvido na luta académica contra o Governo na Escola de Belas-Artes. E pouco depois o meu irmão mais velho foi preso e julgado por ‘actividades subversivas’ – e quem o defendeu, num acto de grande coragem e dignidade, foi ainda o meu tio José Hermano, que era então deputado.
Acrescente-se que muitos dos políticos que hoje estão no activo andaram envolvidos em lutas estudantis e em movimentos revolucionários. O caso de Durão Barroso, que militou no MRPP, é o mais conhecido mas não é o único.
Nos dias que correm, todas essas ilusões revolucionárias morreram ou estão em vias de extinção. O fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, a evolução da China para uma economia capitalista, a morte política de Fidel, tudo isso fez com que certos mitos desabassem e nascessem outras formas de recusa do modelo de sociedade em que vivemos.
Ora uma delas é a homossexualidade. Para alguns jovens, a homossexualidade surge como uma forma de mostrar a sua ‘diferença’, de manifestar a sua recusa de uma sociedade convencional, de lutar contra a hipocrisia daqueles que não têm coragem de se mostrar como são, de demonstrar solidariedade com aqueles que são discriminados ou perseguidos pelas suas opções.
Ser homossexual, para muitos jovens, é tudo isto. É uma forma de insubmissão. E, está claro, é um desafio aos pais. Se antes os jovens desafiavam os pais tornando-se ‘de esquerda’, hoje desafiam-nos recusando a ‘família burguesa’ e mostrando-lhes que há outras formas de relacionamento e até de constituir família. Aliás, assumir-se como homossexual talvez seja, por muitas razões, o maior desafio que um filho pode fazer aos pais.
Todas as gerações, desde esses idos de 60, tiveram os seus sinais exteriores de revolta. Foram os cabelos compridos, as drogas, as calças à boca-de-sino, as barbas à Fidel Castro, os posters de Che Guevara colados na parede do quarto.
Ora a exposição da homossexualidade é hoje uma delas. E a opção gay é uma forma de negação radical: porque rejeita a relação homem-mulher, ou seja, o acto que assegura a reprodução da espécie. Nas relações homossexuais há um niilismo assumido, uma ausência de utilidade, uma recusa do futuro. Impera a ideia de que tudo se consome numa geração – e que o amanhã não existe. De resto, o uso de roupas pretas, a fuga da cor, vão no mesmo sentido em direcção ao nada.
O fenómeno da homossexualidade como forma de contestação deste modelo de sociedade em que vivemos, de afirmação radical de uma diferença – enquadrada num fenómeno contestatário iniciado nos anos 60 –, nunca foi abordado.
Mas olhando para aquele adolescente que ia à minha frente no elevador da FNAC, percebi que era isso que o movia quando fazia uma pose ostensivamente feminina. Ele dizia aos companheiros de elevador: «Eu sou diferente, eu não sou como vocês, eu recuso esta sociedade hipócrita, eu assumo-me».

José António Saraiva, «Homossexuais contestatários», Sol, 9-04-2012

*
Elevadores. Resposta a José António Saraiva

 Sim. Ando de elevador muitas vezes. Às vezes inclino a cabeça, admito. Muitas vezes uso os braços de modo que ache confortável. Estas coisas acontecem quando começo a pensar em coisas, ou observo o mundo ao meu redor. Creio que algo bastante comum em qualquer pessoa que trabalhe e passe a vida a criar mundos imaginários para cinema. Nasci bom observador, admito que não por escolha, e tive a sorte de encontrar maneira de ajudar a criar emoções e memórias através de imagens em movimento.

Elevadores. Passagens tão temporárias e interessantes. Elevadores sempre me fascinaram, por criarem um espaço forçado de observação. Tão pequeno, mas cheio de detalhes. Quem veste o quê, quem olha para onde, quem tosse quando.

Imagino ser aquele rapaz. Podia perfeitamente ser eu. Aliás, fui eu há uns meses. Em Setembro. Estive em Portugal e trouxe o meu namorado para ele conhecer a minha família, que tanto me adora e respeita, e também para conhecer o país onde cresci, as ruas onde andei e os edifícios que me rodeavam em criança. Sou gay e sempre fui. Nunca tive dúvidas e nunca foi uma escolha. Ninguém escolheria alguma vez ser gay, porque muito provavelmente isso traria uma vida de desafios como ter de educar uma pessoa como José António Saraiva. E já agora, caso isto seja novidade, também ninguém escolhe ser heterossexual.

Ir a Portugal com o meu namorado foi um passeio de redescoberta de um país que sempre me trouxe muitas memórias. Desde memórias péssimas de ser violentamente gozado na escola, a nível físico e psicológico, por ser gay. Desde memórias óptimas a criar um grupo de amigos que nunca me trataram de maneira diferente quando eu inclino a cabeça, ou mexo os braços, ou pouso os pés no chão.

Tive a sorte de ter uma família acolhedora, mas conheço muitos casos em que tal não acontece. Se há coisa que aprendi foi a não julgar os outros. Acho que não há nada mais precioso na vida do que aprender com a individualidade de cada um. Talvez seja por isso que tenha conseguido ser tão bem sucedido tanto em Hollywood como em Silicon Valley.

E, apesar de ser gay, ajudei a criar imagens que marcaram o mundo. Imagens que inspiraram adultos e crianças a acreditarem num mundo melhor. Um mundo em que dois robots se podem apaixonar, ou dois escuteiros se podem conhecer em crianças e viver juntos a vida inteira, ou um mundo em que um astronauta encontre um melhor amigo num simples cowboy. Sem falar de um rato que pode cozinhar… Estes não existem na verdade, mas transmitem um ideal de um mundo em que eu acredito ser possível viver. Em que cada pessoa é como é, e em que cada um de nós tem a oportunidade de trazer algo mágico às pessoas que se cruzam na nossa vida.

Não sei em que mundo o José António Saraiva vive, mas pela maneira como publicamente julga os outros deve ser um espaço bastante triste. Tenho pena de não ter estado naquele elevador, naquele momento. Pelo menos, poderia ter olhado para ele, sorrido e, quem sabe, mostrar que o Portugal de agora é um país muito mais acolhedor do que alguma vez foi. Um país em que posso trazer o meu namorado e criar memórias novas para o resto da nossa vida. Um país em que nos podemos casar como qualquer outra pessoa.

Aqui na Califórnia, sinto-me em casa. Sinto-me em casa porque sei que posso andar de elevador, e muito provavelmente vou conhecer alguém que se calhar com apenas vinte anos criou uma empresa que está a mudar o mundo. Ou alguém que se calhar inclina a cabeça de certa maneira, e me faz sorrir por saber que pertenço a um mundo em que podemos ser verdadeiros, genuínos e nós próprios.

E entretanto vou criando outros mundos imaginários. Que muito provavelmente irão fazer sorrir os filhos, netos ou bisnetos do José António Saraiva.

Afonso salcede (http://fonzie.tumblr.com/)


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