Primeiro alinhas as canetas de tinta permanente. Uma com
tinta negra, outra com tinta azul. A terceira está vazia.
Sentas-te e debruças-te para o caderno de capa preta. O
silêncio arde por toda a casa.
Abres o caderno onde sepultaste, há dias, umas quantas palavras. E ao
abri-lo caem as imagens sobre a mesa. O caderno volta a ficar branco - o
caderno, a nocturna memória do mundo, a vida. Tudo branco como a morte.
Nenhum corpo cresce, nenhuma sílaba ficou esquecida no
papel, nenhum eco do coração.
Sentado, como se estivesses sentado sobre o mar, escutas o
lento bater nos confins dos ossos. Mas já nada tremula na luminosidade plúmbea
do dia. Nada se acende, ou apaga nos céus.
O dia afoga-se
lentamente, na treva do mar.
Deitas-te, então, ao lado do morto que ainda não és. E dele
se liberta um anjo mudo que vem habitar teu corpo.
A vida, como sabes, tem o tempo da areia que se escapa por
entre os dedos. Areia rápida e branca. Esvoaçante.
Agora, a ausência - a tua - é um rosto silencioso. E a tua
mão está enterrada no tesouro das horas.
Finges dormir para que a dor não deixe rastro no sangue.
Nada se move dentro ou fora de ti, excepto o vento no interior dos ossos...
Corpo aéreo, azulínea música rente à claridade da pele.
Páras de escrever. Recostas-te na cadeira e murmuras: da
paixão ficou o estremecimento de terra nos teus dentes, e a sombra de um nome
rasgando o crepúsculo.
Fechas as pálpebras. O canto ergue-se nítido, sobe ao
encontro da boca.
A teu lado está
morto. Inerte e desprotegido - dentro do poema que há-de vir.
Tocas-lhe, como se ainda se escoasse vida no seu sangue. Mas
no cimo da penumbrosa montanha inicia-se o degelo. Abres os olhos, pousas a mão
no papel, escreves.
Tocar a luz, qualquer luz, não consegue ressuscitar nada.
Sílaba a sílaba tudo continua imóvel. Mesmo quando as palavras se agitam e são
voláteis, cortam a respiração - ou quando são vegetais e largam um fio de seiva
quente na língua.
Porque é do silêncio poroso do anjo mudo, da fala
incandescente do seu olhar que, de quando em quando, surge o poema.
A febre desperta o desejo. Uma asa do anjo incendeia-se,
desprende-se do corpo - estilhaça-se no éter da paisagem.
A pouco e pouco, acordas. Ouves o assustador rumor das águas
e dos astros. O calor sufoca-te.
Continuas a não pressentir o fim do corpo. Anotas: falo da
última morte para melhor celebrar a vida.
O dia esvai-se quando, nos céus, se enchem de fogo os olhos
vazios da noite.
Vem uma tristeza escura coalhar-se-te nos lábios. Repetes as
palavras que ambos conhecemos. A cinza da asa incendiada flutua, por fim, em
cima da folha do caderno - e a mão percorre a memória deste corpo. Mancha o
papel.
O tempo, longe daqui - onde passam comboios - já se
esqueceu. O cansaço devassa-te. Lá fora os cães ladram, onde ainda há mundo.
Mas o mundo foi assaltado. Dele roubaste o que restava de
ti. Nenhuma emoção, nenhum sentimento, te pode perturbar.
O mar apagou teus passos. Sabes que é difícil viver sem um
rastro. Mas o Poeta não necessita de um biógrafo, ou de um amante, nem de
morrer violentamente - para que se perturbe o canto do homem.
O viajante que foste espreita por trás da máscara, sorri,
prossegue caminho. Afasta-se com o sangue do anjo nos lábios.
Al Berto, Anjo Mudo
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